domingo, maio 19, 2024

Sem remédio

Pollyanna Xavier

Com pouco mais de um mês à frente da pasta da Saúde em Volta Redonda, Conceição de Souza Rocha surpreendeu ao cancelar o convênio que o governo Samuca tinha firmado com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para o uso da nitazoxanida (Annita) em pacientes suspeitos de infecção pela Covid-19. “Ele (o remédio) não tem comprovação científica”, resumiu.
Firmado em junho de 2020 pelo ex-prefeito Samuca e o médico Edmilson Migowski, o convênio, que até dezembro era supervalorizado pelo Palácio 17 de Julho, foi considerado fora dos padrões exigidos pela medicina, por não ter comprovação científica de que o uso do remédio seria mesmo eficaz contra a Covid-19. O convênio, na verdade, estava cercado de mistérios, com informações que nunca foram divulgadas.
Na época em que foi assinado, o aQui chegou a solicitar a Samuca uma cópia do contrato. Em entrevistas, o prefeito prometeu que iria encaminhar o documento à redação do jornal, o que nunca ocorreu. Só que o aQui conseguiu uma cópia e descobriu por que ele foi mantido em segredo: existe uma cláusula (a 7ª) que determinou sigilo e confidencialidade de ambas as partes.
Samuca, por exemplo, não poderia revelar ao aQui e a nenhum outro jornal que o convênio teria um custo de R$ 463 mil, renováveis a cada seis meses até o fim da pandemia. Conforme nota de empenho, o valor a ser pago corresponderia ao treinamento dos funcionários da Saúde via telemedicina. Mas os cursos nunca foram dados. “Reparem que nem se fala do remédio no convênio. Era para ser dado um treinamento aos funcionários da rede de saúde, de telemedicina, só que isto não aconteceu”, avaliou uma fonte do aQui, pedindo anonimato.
Ela pode estar certa. Veja o que prevê o empenho dos R$ 463 mil da secretaria de Saúde de Volta Redonda, a ser pago à UFRJ: “O município repassará à fundação o montante de R$ 463 mil em até 3 parcelas de R$ 154.333,34, conforme medição prévia”.
Nota Oficial
Mesmo na época em que Samuca vivia a defender o uso do Annita, a UFRJ chegou a emitir uma nota oficial informando que não reconhecia o convênio. “O uso de medicamentos sem comprovação científica não deveria ser considerado, em hipótese nenhuma, um posicionamento oficial da instituição”. O documento informava também que os posicionamentos da universidade sobre a Covid-19 eram emitidos somente pelos grupos de trabalho nomeados pela reitoria. E o nome de Edmilson Migowski não constava nestes grupos.
Na verdade, Migowski, médico pesquisador e professor da UFRJ, desenvolveu a pesquisa com o nitazoxanida em parceria com a Coppe – um centro de pós-graduação e pesquisa de engenharia que desenvolve serviços com expertise de profissionais ligados à própria UFRJ. Na prática, a Coppe vende consultoria em cima das pesquisas realizadas e o ex-prefeito Samuca comprou uma dessas consultorias ao aceitar o uso da nitazoxanida com pacientes em tratamento da Covid-19 em Volta Redonda. Trocando em miúdos, a população atendida neste convênio parece ter servido de cobaia do médico-pesquisador.
Se o resultado foi bom ou não, a atual gestão da Saúde prefere nem calcular. Mas como justificativa ao cancelamento do convênio, Conceição disse que a prefeitura não tem dinheiro para seguir adiante com o acordo e que tanto a Anvisa quanto o Ministério da Saúde já afirmaram que não existe tratamento preventivo comprovado para a Covid-19.
Pé atrás
Quando Samuca anunciou o convênio com a UFRJ para o uso da nitazoxanida, o presidente da Associação Estadual de Municípios do Rio de Janeiro e ex-prefeito de Piraí, Luiz Antônio, enviou um ofício à UFRJ pedindo informações sobre a novidade. Na ocasião, Conceição era secretária de Saúde de Piraí e acompanhou a questão. “Se de fato é bom para a população de Volta Redonda, por que não é bom para todos os demais municípios do Brasil?”, questionou Luiz Antônio.
Em sua resposta, a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, fez declarações surpreendentes sobre o acordo com Volta Redonda. Segundo ela, o termo de convênio entre a UFRJ e a prefeitura era apenas sobre a implantação do projeto ‘Ações para suprir a deficiência de assistência médica e pediátrica e de clínica médica via Telemedicina’ e não sobre o uso da nitazoxanida.
A ideia do convênio, de acordo com a reitora, era disponibilizar educação continuada e conhecimento médico aos profissionais de saúde e unidades hospitalares, através da Telemedicina. Nada além disto. Estranhamente, o que se praticava era totalmente contrário ao que estava no papel.
Por fim, a reitora confirmou que o médico Edmilson Migowski é professor do Instituto de Puericultura e Pediatria da UFRJ e coordenador do convênio assinado pela prefeitura de Volta Redonda. E como coordenador, “ele é o responsável por todas as etapas do projeto, inclusive sua aprovação em comitês de ética, caso haja atividades de pesquisa envolvidas”.
Convênio
O convênio para o uso do nitazoxanida em pacientes com Covid-19 foi assinado no dia 29 de junho de 2020. A medicação foi comprada pela prefeitura e chegou a ser utilizada por cerca de 600 pacientes nos centros de triagem do município. Eles foram orientados a fazer uso do Annita, e, inclusive, ganharam a medicação. Na época, Samuca disse que o uso do remédio não era obrigatório, mas quem fizesse a opção de usá-lo teria que assinar um termo de consentimento disponibilizado pelo professor Migowski.
Os pacientes que recebiam a medicação deveriam ingerir três comprimidos pelo menos uma vez ao dia, por cinco dias seguidos. Exatos 604 pacientes fizeram uso do fármaco e não tiveram evolução da doença, exceto três deles, que precisaram de internação.
Cobaia
Segundo as sociedades brasileiras de Infectologia, de Pneumonia e Tisiologia e a própria Organização Mundial da Saúde, não existe no momento um remédio capaz de combater a Covid-19. E qualquer indicação sem evidência pode sujeitar pessoas a riscos desnecessários. Foi exatamente por causa disso que Conceição decidiu cancelar o convênio com o médico Edmilson Migowski. Em entrevistas concedidas na imprensa e até ao aQui, na ocasião da assinatura do convênio, o médico disse que mais de 300 pessoas sob os seus cuidados teriam feito o uso do Annita e nenhuma delas apresentou reações adversas, nem precisou de internação ou recebeu oxigênio.
O que chama a atenção é que, de acordo com a Sociedade Brasileira de Infectologia, nenhuma dessas informações ditas por Migowski foi incluída em algum estudo registrado com metodologia definida. Essa informação foi publicada pela revista Veja no final de novembro. Por isso mesmo, é perigoso estabelecer a veracidade de tais afirmações ou até mesmo os possíveis benefícios ou limitações do protocolo empregado por Edmilson Migowski.
Outra informação que precisa ser considerada é que os 600 pacientes que usaram o Annita podem, sim, ter sido cobaias do médico da UFRJ. A explicação é simples. Migowski desenvolve estudos sobre o nitazoxanida há mais de 10 anos e não é novidade para ninguém que um remédio para funcionar exige tempo, investimento e voluntários para testagem. Ingredientes garantidos no convênio. Pelo sim, pelo não, uma coisa é certa: até o momento, não há indícios de que a nitazoxanida provoque problemas graves em pacientes com a Covid-19. E só será possível saber depois que a medicação for testada em milhares de voluntários. Volta Redonda não chegou a essa conta, porque o convênio foi rompido antes.

Nota da redação
O aQui solicitou no início da semana uma entrevista com a secretária de Saúde, Conceição de Souza, mas ontem, só ontem, sexta, 5, ela disse que não falaria mais nada sobre o assunto. Uma pena. Poderia confirmar, entre outras, se é verdade que Samuca teria tentado pagar a UFRJ no dia 29 de dezembro. Veja a resposta que ela mandou para as mais de cinco perguntas enviadas pelo aQui: “O convênio citado na reportagem será alvo de uma sindicância interna, após a Controladoria Geral do Município ter encontrado graves vícios e possíveis irregularidades. Com isso, não será possível responder no momento. O que podemos dizer é que se trata de um convênio para treinamento de pessoal da área de saúde para teleatendimento na saúde. Foi assinado em junho de 2020 e até agora, em fevereiro de 2021, nenhum funcionário foi treinado”, concluiu Conceição.

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