quinta-feira, março 28, 2024
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Andar com fé…

Como diz Gilberto Gil: “a fé ‘tá na mulher, a fé ‘tá na cobra coral … Num pedaço de pão”. Ou seja, ela é de livre manifestação. Contudo, muitos não entenderam essa prerrogativa e atacam quem acredita e cultua o diferente. Quem acompanha o aQui deve se lembrar da história sobre o casal de idosos de Pinheiral, praticantes do Candomblé, que se viu forçado a deixar a própria casa, abandonando até o barracão onde cultuava seus orixás, abençoava seus seguidores, e garantir sua segurança física, já que vizinhos da frente, evangélicos, literalmente infernizavam sua vida. Depois de ouvir xingamentos e terem de lidar com música altíssima cujo único objetivo era ofender a fé que professavam, os idosos silenciaram os atabaques e fugiram para um lugar seguro. Mas processou uma vizinha.
“Ocorre que a situação não só permaneceu como piorou, pois passaram a impossibilitar que a Sra. Neyde recebesse até mesmo seus familiares em sua residência, que se localiza acima do Barracão, pois os barulhos ficaram tão altos que impossibilitavam o diálogo entre a vítima, sua família e até visitas. Além destes fatos, o aborrecimento foi, também, a causa para os problemas psicológicos do Sr. Arthur, Ogã da casa, idoso e esposo de Ya Neide”, relembrou Lívia Alves Moreira, a advogada que acompanhou o caso e que é membro da Comissão Estadual da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil do Rio de Janeiro e Coordenadora de projetos da Anan (Associação Nacional de Advocacia Negra).
O caso ainda permanece sem decisão judicial, contudo uma lei recente, sancionada pelo governador em exercício, Cláudio Castro, pode ajudar vítimas da intolerância religiosa como o casal de idosos de Pinheiral. A Lei 9.212/21 institui o Programa de Assistência às Vítimas de Intolerância Religiosa no Estado do Rio de Janeiro, e estabelece que caberá à secretaria estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos e à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) constatar a ocorrência dos casos de intolerância e encaminhá-los para aplicação do Plano de Assistência às Vítimas de Intolerância Religiosa.
Vale destacar que o programa tem como finalidade a segurança de templos ou ambientes sócio-cultural-religiosos que estejam sendo ameaçados; proteger a integridade física das vítimas, seus familiares e adeptos que estejam vulneráveis, através da inclusão em programa de proteção à vítima e testemunha; além de oferecer moradia às vítimas, seus familiares e adeptos que perderam suas residências ou que estejam em estado de perigo em virtude da intolerância religiosa, através de inclusão no sistema de aluguel social. “Os casos de intolerância religiosa estão se tornando cada vez mais frequentes e graves, portanto, precisamos assegurar segurança pública e a liberdade de crença e culto. É necessário garantir a integridade física das vítimas”, explicou o autor do PL, o deputado Átila Nunes (MDB).
No Sul Fluminense, a nova Lei repercutiu. Para o vereador Washington Uchôa – que pediu licença dos serviços de pastor e não responde mais como líder religioso –, a medida é importante para a preservação de cultos religiosos em geral. Ele fez questão de dizer que os templos evangélicos também estarão seguros de possíveis ataques, embora não se tenha notícias suficientes de igrejas evangélicas sendo depredadas com constância ou seus integrantes sendo impedidos de exercerem sua religiosidade por conta da fé que professam. Em Volta Redonda, por exemplo, sabe-se apenas de instituições evangélicas sendo multadas por descumprirem os decretos municipais em favor do combate à pandemia. Mais de uma vez, inclusive.
“O Brasil quanto Estado é laico, ademais, nos termos do art. 9º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o Estado do Rio de Janeiro garantirá, através de lei e dos demais atos dos seus órgãos e agentes, a imediata e plena efetividade dos direitos e garantias individuais e coletivos, de forma que ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas. Assim, acredito que a Lei Estadual representa mecanismo de efetivação e proteção ao direito de culto e de liberdade religiosa, sendo a sua aplicação ampla e poderá ser utilizada inclusive por igrejas evangélicas que se sentirem ameaçadas e/ou depredadas”, opinou.
Ainda de acordo com o vereador, o único problema da lei é o fato de o Estado se tornar responsável por garantir moradia para as vítimas que perderam suas casas por conta da intolerância, como aconteceu com os idosos de Pinheiral. “No geral, portanto, a norma é positiva, com potencial de produzir importantes mudanças, o único aspecto que tenho como ressalva é referente ao contraponto orçamentário, uma vez que consta que o Estado deverá oferecer ‘moradia’, pois sabemos que em decorrência da crise do Covid-19 todos enfrentamos as consequências econômicas da pandemia, de forma que o único questionamento que cabe a mim como parlamentar é a preocupação em saber qual a origem desses recursos”, pontuou Uchôa.
O líder religioso de matriz africana Babalorixá Fabrício de Xangô comemorou a iniciativa, mas questionou se haverá fiscalização. “É válido ressaltar que somente a existência da lei não é essencial, mas, sim, a fiscalização quanto à sua aplicabilidade, para que ela atinja a sua finalidade principal, que é o combate à intolerância religiosa. Nós, Sacerdotes, vivemos em constante preocupação quanto aos nossos filhos e templos, pois os ataques de cunho religioso aumentaram gradativamente e mesmo que o nosso código penal traga em sua letra de lei a intolerância religiosa como crime, nos vemos desamparados com o número de ataques recorrentes na região marcados pela impunidade dos agressores”, disparou o Babalorixá.
Escola: lugar também de tolerância
Certo de que tolerar a fé alheia se aprende desde cedo, o deputado Waldeck Carneiro (PT) também apresentou uma lei – já sancionada pelo governador em exercício – que tem o objetivo de conscientizar a comunidade escolar e ensinar os estudantes das escolas públicas e privadas do estado que se deve combater a intolerância religiosa. Segundo a medida, as escolas deverão promover ações extracurriculares com os seguintes temas: respeito à liberdade individual de crença e de culto e à diversidade cultural e religiosa; luta contra o racismo no Brasil; importância na formação da sociedade brasileira da ancestralidade africana, indígena e da tradição judaico-cristã; relação entre a liberdade religiosa e a laicidade do Estado, além das consequências da intolerância a qualquer manifestação religiosa.
É importante ressaltar que a nova medida não isenta as escolas de promoverem atividades previstas na Lei Federal 10.639/03. Pelo contrário, pretende fortalecer a Lei 8.113/18, que criou o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa. Mas determina que a direção de cada unidade escolar mantenha, em locais de fácil visualização, as seguintes informações: número telefônico da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi); Disque 100, do governo Federal, canal destinado a receber denúncias de violações de direitos humanos; Disque Combate ao Preconceito, do Governo Estadual; além de informações sobre como proceder para denunciar casos de intolerância religiosa; o texto do artigo 208 do Código Penal Brasileiro, que descreve as condutas de intolerância religiosa tipificadas como crimes.
“O engajamento das comunidades escolares é fundamental para o combate à intolerância religiosa, uma vez que é nesse ambiente que muitas vezes se tem o primeiro contato com a ideia de sociedade, sendo ainda o lugar em que se aprende a dividir o espaço com outras pessoas, de outras famílias, o que proporciona contato com outros costumes, valores e culturas”, afirmou Waldeck.
Mais uma vez, o babalorixá Fabrício de Xangô encontrou esperança na lei. “Muitos irmãos da sociedade desconhecem a existência do disque 100 (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), então uma maior divulgação do disque denúncia, como é trazido pelo projeto, iria nos tranquilizar pois mostra que as autoridades nos amparam, porque muitas vezes nos vemos sozinhos na luta contra a intolerância religiosa. Vivemos em um país miscigenado e constitucionalmente laico e não podemos ser vítimas de preconceito por propagar a nossa fé”, disse o religioso.
Ainda de acordo com o Babalorixá, introduzir no processo educativo questões do tipo são extremamente benéficas, desde que sejam feitas de forma responsável, sem emprego de termos preconceituosos ou descontextualizados. “Eu como Sacerdote da Religião Afro Brasileira, friso sempre pela importância de medidas socioeducativas a fim de levar à sociedade a conscientização do que realmente é a Religião africana, sem os rótulos e as definições trazidas pelo racismo estrutural advindo da cultura escravagista existente no Brasil”, opinou.
“A apresentação da cultura religiosa nas escolas é muito importante e válida, considerando que é nas escolas que as crianças e jovens aprendem a realizar o senso crítico quanto às questões sociais. Aqui no Sul fluminense por exemplo, já observei que quando havia ensino religioso na grade curricular ele era facultativo em respeito à laicidade estatal, mas o mérito trazido nas aulas era somente das religiões com maior número de adeptos, ou seja, o catolicismo e a religião evangélica. Nunca vi ser trazido aos alunos o ensino sobre o espiritismo, judaísmo, budismo e muito menos o ensino das religiões afro-brasileiras pelos motivos já mencionados anteriormente”, arrematou Fabrício.
Diante das novas leis sancionadas, o aQui foi verificar com as secretarias de Educação de Volta Redonda e Barra Mansa como fariam a aplicação das medidas. Uma semana depois, apenas o secretário de Barra Mansa, Marcos Vinícius Pires de Barros, respondeu. “A Prefeitura de Barra Mansa, através da secretaria de Educação, informa que segue todas as orientações e diretrizes da Base Nacional Comum Curricular, inclusive em relação ao ensino religioso. Além disso, a Secretaria de Educação, juntamente com a Gerência de Promoção da Igualdade Racial (Gepir) realiza frequentemente o Projeto Afrosaberes – Étnico Racial, que é desenvolvido em todas as escolas, onde são feitas rodas de conversa para fortalecer o diálogo entre os jovens. Entre os assuntos abordados, estão as religiões de matriz africana”, disse.

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