Por Roberto Marinho
Um decreto recém-criado pelo prefeito Samuca Silva nem bem caiu nas redes sociais e já está dando o que falar. Assinado em abril, no auge da Covid-19, o documento permite que as Associações de Moradores instalem e operem – ou terceirizem os serviços – câmeras de segurança em logradouros públicos (ruas, calçadas e praças) com o argumento de ampliar a segurança de quem vive no município. No caso de passar a espionagem a empresas do ramo, as associações seriam responsáveis pela guarda das imagens, que poderão ser cedidas, por meio de ofício, às polícias civil, militar e federal, e ainda à própria prefeitura e ao Ministério Público a “fins de investigação e prevenção dos delitos” nos bairros, con-forme especifica o decreto.
Só que a ideia, que pode até parecer benéfica, uma vez que iria aumentar a quantidade de câmeras de segurança espalhadas pela cidade, está gerando polêmica entre os moradores, que acham a medida inva-siva e ineficaz. Segundo algumas pessoas ouvidas pelo aQui, o fato de as imagens estarem acessíveis para os integrantes das associações, sem qualquer controle externo, seria temerário.
Isso poderia, dizem, provocar riscos, ao invés de aumentar a segurança. “Quando o particular (associações) passa a executar o serviço que é de competência do Estado, sem que haja um contrato de terceirização desse serviço, fica clara a atuação de milícias nos bairros de Volta Redonda”, pondera um voltarredondense, que se mostra totalmente contrário à liberação do uso de câmeras ao bel prazer dos presidentes das associações de moradores.
A posição dele é compartilhada por uma moradora do Laranjal. “Infelizmente, não sabemos a índole de todas as pessoas. Quem vai ter acesso a essas imagens? E se começarem a analisar a rotina das famílias para ajudar possíveis criminosos? Descobrir quem são as pessoas que moram em determinada casa, qual a rotina de cada um. Quem vai controlar o acesso a esse tipo de imagens? Acho muito perigoso”, analisou, mostrando-se preocupada, pois no Laranjal as câmeras já estão sendo colocadas.
Pedindo anonimato, ela afirmou que, embora more no bairro há décadas, não sabe quem são os integrantes da Associação de Mora-dores. “Moro aqui há 44 anos, não sei quem é da associação atualmente. Antes da pandemia, algumas pessoas chegaram a se reunir no Clube do Laranjal, agora eu não sei onde estão se reunindo. Não sei se na casa de alguém que se diz membro da associação, nada disso”, comentou, garantindo que desconhece “qualquer divulgação” dos atos da associação.
Segundo a moradora, não é a primeira vez que alguns moradores do bairro tentam emplacar a ideia e há cerca de um ano, alguns deles, se dizendo da associação, bateram de casa em casa questionando a possibilidade de instalarem câmeras para vigiar as ruas do bairro. “Eles bateram na minha porta e de vizinhos, querendo botar câmera na rua, mas nós não concordamos. Os moradores das ruas 105 e 111 não concordaram. Achamos que isso – colocar câmeras na rua – pode acabar sendo um grande Big Brother (BBB da TV Globo, por sua vez inspirado no clássico 1984, onde uma autoridade suprema, o Grande Irmão, vigia tudo e todos). Quem tem que fazer isso é a pre-feitura, nada de particular tomando conta da gente. Se fosse o Ciosp (Centro Integrado de Operações de Segurança Pública) a tomar conta, seria uma coisa. Mas, botar um terceiro, que a gente não sabe quem é, para tomar conta da vida da gente, onde já se viu isso? É um absurdo”, disse.
Antes de encerrar, ela acrescentou: “Cada um que coloque câmeras na sua casa. Mas colocar no bairro, que eu saiba, não existe consenso. Não estou entendendo o que eles querem com esse decreto maluco”, avaliou.
Decreto
O decreto número 16.134 foi assinado pelo prefeito Samuca Silva em 28 de abril, e contém cinco artigos. O primeiro diz que ficam autorizadas as associações de moradores “legalmente constituídas a implantar e ampliar câmeras de segurança em logradouros públicos”. Para isso, o parágrafo define que as associações devem ter o respaldo da maioria dos moradores onde serão implantadas as câmeras, e que o projeto deve ser “aprovado em assembleia, com ata e lista de presença, que deverá ser protocolada na secretaria municipal competente”.
O decreto determina ainda que as câmeras devam ser “obrigatoriamente voltadas para os logradouros públicos”, ou seja, para as praças e ruas. E que elas deverão ser instaladas “preferencialmente em áreas privadas”, o que não acontece no Laranjal, onde a maioria foi colocada em postes fincados nas calçadas do bairro. Para que isso fosse possível, a associação teria que pedir autorização aos órgãos competentes.
O terceiro parágrafo do decreto BB determina que fica a cargo de cada associação contratar e custear a empresa que irá instalar as câmeras, captar as imagens e monitorar o sistema, se a entidade optar por terceirizar o serviço de espionagem. Tem mais. As imagens captadas ficarão disponíveis para as forças de segurança pública – polícias civil, militar e federal, além do Ministério Público – e a prefeitura, desde que solicitadas oficialmente. Detalhe: é proibida a reprodução e o fornecimento a terceiros das imagens capturadas pelas câmeras de vigilância, salvo para atender a autoridade policial ou judicial.
Por último, que merece destaque, é que as associações terão que, obrigatoriamente, afixar avisos sobre a existência das câmeras nos locais onde elas estiverem instaladas.
Advogados criticam
Um advogado consultado pelo aQui, que preferiu se manter no anonimato, afirmou que a redação do artigo é “con-fusa”, e apontou diversas incongruências. Como por exemplo, quando o decreto define o local de instalação das câmeras preferencialmente em propriedade privada. “A câmera é instalada em um local privado, para vigiar um local público? É meio estranho. Além disso, o mesmo artigo oferece a possibilidade de instalação nos postes da prefeitura. É como se a prefeitura dissesse: instala no seu poste, mas se você não tiver, te empresto o meu. E se não der, te autorizo a instalar um novo poste. No fundo, a responsabilidade sobre o local da instalação da câmera fica indefinida”, argumentou.
Segundo ele, a obrigatoriedade das associações custearem o projeto é outro ponto controverso. “Pode parecer que a prefeitura quer usar as associações para contratar as empresas de vigilância sem licitação. A prefeitura até poderia fazer essa contratação, caso o custo fosse menor que R$ 8 mil, como permite a lei das licitações. Então, pra quê o projeto? Mas a grande pergunta que vejo é: qual associação de moradores vai ter dinheiro para pagar por isso? Eu já participei bastante tempo da associação do meu bairro, e posso garantir que ela não tem dinheiro para instalar e manter câmeras de vigilância nas ruas”, apontou.
No entanto, apesar da redação dúbia e dos questionamentos, o advoga-do não vê o decreto como ilegal, e diz que ele até poderia ser benéfico. “Poderia ajudar a aumentar o número de câmeras na cidade, um dispositivo que sabemos que é eficaz no combate ao crime”. Mas ele chama atenção para a discussão sobre a priva-cidade dos moradores. “A meu ver, não há nada ilegal no decreto, em relação à competência e ao objetivo. O que poderia ser questio-nado, no meu entendimento, é a questão da privacidade, de moradores que não querem que terceiros tenham acesso a imagens da frente da sua casa, por exemplo. Isso poderia causar problemas na Justiça em relação a este decreto”, afirmou.
A advogada Mayara Calheiros, consultada pelo aQui, tem opinião parecida sobre o decreto, principal-mente em relação à questão da privacidade. “Tem muita controvérsia no meio jurídico, porque a Consti-tuição Federal informa no artigo 5º, inciso X, que ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas’, mas da mesma forma ela também diz, em contrapartida, em seu artigo 3º, inciso II, trazendo como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a garantia do desenvolvi-mento nacional, e como um direito social, a segurança. Então, tem jurista que acredita que o direito à privacidade deve imperar, mas tem jurista que entende que em casos específicos, para preservar pela segurança pública, a privacidade pode ser relativizada”, aponta Mayara.
Na opinião da advo-gada, por essa questão da violação à privacidade, o Big Brother dos bairros de Samuca pode se tornar inconstitucional. “Acho que esse decreto é incons-titucional, porque a priva-cidade das pessoas que estejam passando por locais públicos vai ficar à dis-posição de quem tiver aces-so àquelas câmeras e por mais que diga que esse mate-rial não pode ser divulgado, sabemos que no Brasil isso não é tão simples assim. Além disso, mesmo que não sejam divulgadas, eu posso não querer que aquela associação tenha direito a acessar minhas imagens”, apontou.
Nota da redação: O aQui procurou a prefeitura de Volta Redonda para saber mais detalhes sobre o projeto, e também como estão funcionando as câmeras do Ciosp.