Por Vinicius de Oliveira
Oscar Niemeyer, o arquiteto brasileiro mais importante da história do país, responsável por tantas obras de arte – como o Memorial 9 de Novembro, na Vila –, antes de morrer, em 2012, disse que “o mais importante não é a arquitetura, mas a vida”. No entanto, desde sua partida, essa máxima vem perdendo força a olhos vistos da população, muitas vezes por determinação dos próprios governantes, através de práticas cruéis que têm como principal objetivo expulsar das calçadas, marquises, pontes e viadutos qualquer tipo de ser vivo, especialmente as pessoas em situação de rua. Não à toa, a tendência é definida por especialistas como ‘arquitetura hostil’.
Conforme explica a arquiteta e urbanista Yara de Miranda Dutra Gil, a arquitetura hostil, também conhecida como arquitetura defensiva, sob o manto duvidoso da proteção do patrimônio, tem servido, na verdade, para separar, manter distância ou proibir determi- nados comportamentos. “Alguns veem isso como uma forma de ordenar, fornecer segurança e impedir maus comportamentos, como dormir, estar em um lugar, se abrigar da chuva ou até mesmo andar de skate em certas localidades públicas. Mas, em alguns lugares, a arquitetura hostil claramente ajuda a diferenciar certas classes, essencialmente mantendo a população vulnerável e os sem- teto fora, porque é uma forma de gentrificação, sendo um processo de transformação de áreas urbanas que leva ao encarecimento do custo de vida e aprofunda a segregação socioespacial nas cidades”.
Casos do tipo não são novos, porém começaram a chamar a atenção dos brasileiros como um todo, de fato, depois que o padre paulistano Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, publicou, em 2021, em suas redes sociais uma imagem onde quebrava, a marretadas, pedras pontiagudas que tinham sido colocadas embaixo de viadutos na Zona Leste de São Paulo. Foi o bastante para que o público percebesse que tal tipo de prática urbanística se espalha pelo mundo feito um vírus e já contaminou Volta Redonda. O próprio aQui vem tratando do assunto desde julho de 2021 (edição 1259) e, há pouco, na edição 1334.
A revolta do religioso, que atua na área social há 35 anos, causou tanto alvoroço que rendeu uma lei, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), em 2022, proibindo a hostilidade arquitetônica. Inclusive, o texto da lei foi republicado no Diário Oficial da União nesta quarta, 11, após ter passado por correções. Vereadores normalmente de esquerda têm reproduzido a ideia em suas cidades, como aconteceu em Volta Redonda no início deste ano. Yara, que morou em Volta Redonda por 15 anos e atualmente vive em São Paulo e que chegou a acompanhar de perto a luta do padre Júlio Lancellotti, afirma que é fácil identificar na cidade do aço espaços – públicos ou não – que exibem arquitetura hostil. “Nós conseguimos identificar facilmente onde se usa a arquitetura hostil, normalmente em locais comerciais e institucionais, como uma forma de ‘limpeza’. Aqui em Volta Redonda, consigo observar que a inserção desses elementos para afastar pessoas em situação de rua traz à tona um problema mais profundo: o descaso e a banalidade que existe diante dessa parte da população”, disparou. “Um exemplo que obser vei foi na loja Ponto Frio (tema de reportagens do aQui) e na loja da Claro, onde eles estabelecem gradil, ocupando a
área de marquise, sendo ela de uso privado, por fazer parte do prédio e parte da calçada, de uso público. Outro grande exemplo é na Moderna Mega Store, também na Vila Santa Cecília, onde possuem muretas com ferros fincados para que ninguém possa sentar e, também, algumas lojas que possuem degraus, evitando que alguém consiga se estabelecer por ali”, continuou Yara.
Segundo a arquiteta, essas ações tendem a beneficiar comerciantes e empresários. “Já observei a mesma ação próximo a alguns pontos de ônibus da cidade. Me recordo que próximo do Memorial 9 de Novembro e também no largo onde se localizam os Cecisas são locais gradeados ou com bancos sem encosto, fazendo com que não caiba uma pessoa deitada e não tenha conforto para dormir”, enumerou Yara, citando também, o Escritório Central da CSN. “O fechamento da marquise do Escritório Central foi feito não só para evitar que pessoas sem- teto se abriguem por ali, mas também manifestações políticas”, crê. De acordo com Yara, a pauta defendida por Júlio Lancellotti foi fundamental para espalhar pelo país a ideia de que os espaços públicos não contemplam a inclusão. Ao contrário, são excludentes. “Se tornou grande, mostrando da forma mais realista possível como a ação hostil cria o conceito de que a cidade não é de todos. Acho importante que essa lei seja empregada em todas as localidades e admiro quem tome a iniciativa de elaborar uma lei nesse sentido”, elogiou.
Engana-se quem acredita que a prática hostil na arquitetura atinge apenas pessoas em situação de rua. Conforme lembrou Yara, a hostilidade afeta a todos, impedindo que a cidade seja ocupada pela população de forma plena. “Em tempos de chuva como estes que estamos vivendo, muita gente sai prejudicada, pois não tem lugar para se abrigar enquanto o temporal não passa. Todos saem perdendo. Imagina um idoso ou deficiente precisando se encostar na Mega Store da Vila em dia de chuva ou por estar passando mal. Não vai poder”, observou. Yara lembrou ainda que até os pássaros sofrem com a arquitetura hostil. “Por conta das grades, eles não têm onde pousar. Mas não é só isso. Prédios espelhados são exemplos de arquitetura hostil a esses animais, pois eles não conseguem entender que aquilo é um espelho e acabam morrendo ao se chocar contra eles. Esse tipo de estrutura também é prejudicial ao meio ambiente, pois cria ilhas de calor”, pontuou.
Já para Lincoln Botelho, arquiteto e professor universitário, o que Volta Redonda precisa vai além do urbanismo. É uma questão de planejamento urbano. “O urbanismo não é uma ciência, é um modo de organizar a cidade do ponto de vista estético, que envolve outros profissionais além dos arquitetos. Já o planejamento urbano preconiza políticas públicas e é previsto no Plano Diretor da Cidade”, comentou.
Segundo Lincoln, com um Plano Diretor bem-feito, o que ele chama de “patologias urbanas”, caso da arquitetura hostil, seriam evitadas. “Mas o Plano Diretor da cidade, feito em 2008, é um espantalho. Ele sozinho não dá conta de resolver os problemas, precisa de uma série de leis específicas que o complementem, mas em Volta Redonda não tem nem gente capacitada para tratar desse assunto. E agora já está vencido”, criticou o arquiteto, lembrando que o governo Samuca tentou editar um novo Plano, mas inconsistente. “Apesar de uma redação correta, não serviria por só ter sido aprovado pela Câmara. A gestão Neto reeditou esse Plano, enviou aos vereadores e depois pegou de volta. Mais um
que não deve vingar e, se vingar, as chances de ser inócuo, como o de 2008, são grandes, porque tem muito trabalho a se fazer, mas sem equipe para tanto”, profetizou.
Provocado a comentar a atuação do IPPU-VR (Instituto de Planejamento e Pesquisa Urbana), responsável pela urbanização e demandas do tipo, Lincoln logo disparou: “Lá tem um bando de arquitetos que só faz projetos de casa, escola, hospital, praça. São muito bons nisso. Mas não tem nenhum arquiteto que cuide de planejamento. E não tem há muito tempo. Só no governo Baltazar que vimos um arremedo disso”, comparou.
Sobre a lei Padre Júlio Lancellotti, Lincoln concorda que ela é de interesse público e considera perfeitamente possível de ser implementada. “Mas ainda precisará de decretos regulamentando a lei, identificando cada caso que fere o espírito dela. Ou seja, mais uma vez será necessário um trabalho de planejamento urbano que dependerá não só de profissionais qualificados, mas, também, da ajuda de lideranças comunitárias para uma ampla discussão”, avaliou Lincoln, observando que atuar sobre propriedades privadas, como é o caso do Escritório Central da CSN, demandam ações específicas do Poder Público e definitivamente não será tarefa fácil. “Deverá analisar, por exemplo, se essa área privada é contígua a locais públicos e se a arquitetura é condizente ou não à área urbana”.
Vale lembrar que a versão volta-redondense da lei do Padre Júlio Lancellotti, em tramitação na Câmara de Vereadores, prevê que o Poder Público derrube qualquer estrutura considerada hostil em 30 dias a partir da sua promugação. Sobre essa questão, a secretaria de Comunicação da prefeitura de Volta Redonda, ao ser procurada, deu a entender que não levará em consideração o que diz a redação da lei local, mas vai seguir o que foi aprovado pelo Senado. “Trata-se de uma lei federal nova, que está sendo implementada e será respeitada como deve ser”, informou. A Secom garantiu ainda que os casos de Volta Redonda serão analisados pelo IPPU-VR, assim que o titular – Abimailton Pratti da Silva – voltar das férias. “Vamos checar todas as informações publicadas pelo aQui e ainda as que nossa equipe encontrar e que possam ferir a Lei Lancellotti”, disse Rafael Paiva, titular da pasta. “Temos que considerar as questões de segurança”, acrescentou.
Ao apurar o caso, a reportagem do aQui também encontrou mais um caso típico de abuso à lei, como o que existe na marquise do Ponto Frio. Pior. Está ao lado da Biblioteca Municipal, na Vila, ao fundo da galeria de Arte Zélia Arbex (ver foto). Claramente foi criado para impedir que moradores de rua procurassem abrigo para dormir ou se proteger nos dias de chuva.
Tem mais. Embaixo do Viaduto Heitor Leite Franco, ao lado da Neto Esporte, loja da família do atual prefeito de Volta Redonda, na Avenida Amaral Peixoto, o Poder Público local tomou duas atitudes. Uma, boa, de instalar banheiros públicos. Outra, má, de colocar encostos metálicos nos bancos da pracinha existente perto da antiga boate Auê, para evitar que as pessoas possam deitar nos bancos.
Caberá ainda ao presidente do IPPU-VR definir se a arquitetura hostil se enquadra no caso específico do Memorial Zumbi, também existente na Vila, quase ao lado da Biblioteca Municipal. Ele foi construído em 1990, durante o governo Wanildo de Carvalho, com projeto do arquiteto Selso dal Bello, e escultura em aço de autoria do arquiteto Rogero Masson. O Memorial é um centro cultural destinado a resgatar os valores da cultura afro-brasileira. “No projeto original, não existia a cerca – com lanças – que o circunda (ver foto) e que serve para evitar que moradores em situação de rua durmam no espaço. Ou mesmo que se protejam do sol e da chuva. Era um espaço aberto”, detalha um arquiteto de Volta Redonda. O lugar é muito pouco utilizado em eventos oficiais. Um até – exposição de livros espíritas – foi impedido de ser realizado no seu interior. “Acho que por ser um espaço público com destinação específica, a grade não pode ser considerada hostil”, avaliou uma fonte do aQui.