‘O gato comeu?’

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Por Roberto Marinho

Quem tem mais de 40 anos deve se lembrar de David Copperfield, mágico americano que fazia muito sucesso na televisão sumindo com coisas gigantescas, como um avião de passageiros. Sumiu até com a Estátua da Liberdade, um dos seus truques mais famosos. Hoje, sua fama ‘é pinto’ perto das artimanhas usadas por políticos, os verdadeiros mágicos. Os ex-prefeitos Neto e Gotardo, por exemplo, e ainda Samuca, o atual mandatário do Palácio 17 de Julho, conseguiram a proeza de sumir com uma lagoa de cerca de 3 mil metros quadrados – 74 metros de comprimento por 40 metros de largura –, localizada na Rodovia dos Metalúrgicos, na entrada do Jardim Belvedere.

 

A imponente lagoa começou a minguar em 2004, quando a cidade do aço era comandada pelo ex-prefeito Neto. Como em um passe de mágica, agora, 15 anos depois, ela desapareceu de vez com a obra de terraplanagem para a criação de um condomínio, que ninguém sabe dizer se será residencial, comercial ou industrial, empreendimento da família Campos Pereira, do Portal da Saudade, entre outros.

 

A movimentação de centenas de metros cúbicos de terra enterrou de vez, dizem alguns ambientalistas, a lagoa que existia na área entre o cemitério Portal da Saudade e o acesso ao Jardim Belvedere e bairros adjacentes. Para isso, foi necessário fazer a canalização de um trecho da Rodovia dos Metalúrgicos, iniciando nas proximidades do cemitério até atingir o Rio Cafuá (depois do Hospital Unimed), que passará a receber a água proveniente das chuvas e do que for construído na antiga área da lagoa.

 

 Para liberar a obra (terraplanagem e canalização), a prefeitura de Volta Redonda vai ganhar de presente uma rotatória para facilitar a mobilidade urbana entre o Hospital Unimed e o Shopping Park Sul, beneficiando ainda, no futuro, o acesso ao Jardim Belvedere, ao centro da cidade, passando pela São Geraldo etc. E, óbvio, a entrada e saída do Portal da Saudade. A mágica, abordada pelo aQui em várias edições não agradou ao público formado por moradores do Jardim Belvedere e bairros adjacentes. O espetáculo para eles não merecia ser encenado.

 

Segundo ato

O que pouca gente sabe é que a morte da lagoa do Jardim Belvedere aconteceu bem nas barbas das autoridades de Meio Ambiente e, principalmente, dos fiscais do Inea (Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro). Desde 2004, para ser exato. Foi quando a lagoa começou a minguar e, ano após ano, um pedacinho sumia. Em 2011, de tanto ser aterrada, ela passou a ser conhecida como ‘taboa seca’. A situação se agravou no início de 2012 quando, coitada, já estava praticamente extinta. Até que em 2019, com as obras do grupo CP, tudo foi aterrado para dar lugar a um imenso empreendimento particular.

 

O fim da lagoa do Belvedere tem as digitais dos ex-prefeitos Gotardo Netto e Antônio Francisco Neto, que governaram a cidade do aço no período de 2004 a 2016. Talvez menos experiente que seus antecessores, Samuca jogou a pá de cal ao conceder a licença para as obras do grupo CP. A prova está em um documento, ao qual o aQui teve acesso – onde a secretaria de Meio Ambiente, comandada por Maurício Ruiz; confirma a existência de um riacho, agora devidamente canalizado.  

 

O documento, cuja cópia foi obtida pelo aQui, é o Cila (Certificado de Inexigibilidade de Licença Ambiental), de nº 020/2018 assinado por Maurício Ruiz. Ele foi emitido em 10 de outubro de 2018, a pedido de Mauro de Oliveira Pereira, o ‘seu Mauro’, patriarca do Grupo CP. O documento, como o próprio nome diz, isenta a obra da licença ambiental para “implantar aproximadamente 750 metros de canalização de curso d’água ao longo do trecho da rodovia (dos Metalúrgicos)”. O curioso é que tanto ‘seu Mauro’ quanto Ruiz sempre negaram a existência tanto da lagoa quanto do riacho.

 

Maurício Ruiz, procurado pelo aQui, afirmou que a história não é bem assim. Diz que a região “era uma área brejosa, com fluxo de água constante”. Ou seja, tinha um rio. Mas, segundo ele, nos últimos cinco anos a lagoa já não existia. Tem mais. Garante que todos os requisitos legais foram cumpridos. “São três documentos (exigidos, grifo nosso): a supressão de vegetação, com a compensação de dez árvores plantadas para cada uma retirada, o que nunca aconteceu na cidade, e que foi feita preventivamente, o que também é inédito. Foram duas mil árvores (plantadas no Jardim Belvedere, na própria Rodovia dos Metalúrgicos, e em alguns trevos da Rodovia do Contorno, grifo nosso). Há ainda o Cila que considera o córrego como de interesse social, já que está à beira de uma rodovia – e a licença ambiental”, afirmou.

 

Ruiz revelou ainda que, há duas semanas, o proprietário da obra (‘Seu Mauro’) teria sido multado em R$ 200 mil, por ter enchido de terra o pouco de lagoa que deverá ser preservado, com a função de ser uma bacia de regulação. De acordo com o secretário, este local servirá para regular a vazão de todo o sistema, junto com a lagoa que existe no lado oposto da rodovia, no condomínio Vivendas do Lago.

 

“Nós havíamos feito um acordo, que não poderia entrar terra ali, já havíamos demarcado o local. Mas, até por conta das chuvas excessivas há algum tempo, a terra foi carregada para este resto de brejo. Pedimos que fosse retirada, mas o trabalho não foi feito na velocidade que acordamos. Há 90 dias o proprietário foi notificado, e não aconteceu como esperávamos. Então nós cumprimos o que manda a lei e emitimos a multa”, disse Ruiz.

 

Sobre as polêmicas em torno da obra – que renderam até um vídeo de um morador, que foi muito compartilhado nas redes sociais –, Ruiz entende que “é bom que a população esteja atenta”, destacou, sem explicar direito o que seria estar atento. E a quem? Em relação ao riacho que não existiria, mas que recebeu licença para ser canalizado, Ruiz disse que ele já havia sofrido diversas intervenções ao longo do tempo, o que o teria descaracterizado. 

 

“A lei é muito clara: esse rio foi sendo retificado ao longo do tempo, é uma área degradada e próxima a uma rodovia. Além disso, o Plano Diretor considera aquela região como Área de Expansão Urbana. É preciso pensar ainda que será feita a regularização do sistema de drenagem da rodovia, que era inexistente, e a população vai ganhar uma nova rotatória, com uma nova entrada para os bairros da região do Belvedere em um futuro próximo”, disse Ruiz, que acrescentou: “Toda grande obra traz transtornos, mas será deixado um legado para a cidade”.

 

Detalhes do processo

As justificativas são plausíveis, mas alguns detalhes chamam a atenção de especialistas ouvidos pelo aQui. Segundo um deles, não há nenhum problema no fato da prefeitura dar licença para um particular fazer obra em sua área, oferecendo obras de infraestrutura como contrapartida. “Na verdade, isso é o correto, tem que ter contrapartida do proprietário”, disparou, referindo-se à criação da rotatória, oferecida pelo grupo CP. 

 

Mas, segundo ele, o alvará da obra não poderia ser assinado por apenas uma pessoa, que neste caso foi o presidente do IPPU-VR, engenheiro metalúrgico Márcio Lins. “O normal são duas pessoas assinarem o alvará. Dá a impressão de que foi uma coisa de cima para baixo, feita sob pressão”, argumentou. “Se bobear, devem existir laudos contrários, feitos por técnicos da prefeitura, sobre essa obra, mas seria preciso ver isso no processo”, pontuou, pedindo para não ser identificado. 

 

Enchentes na Vila podem piorar 

A mesma fonte que abordou a questão do alvará ser assinado apenas por Márcio Lins garante que a parceria da prefeitura com o grupo CP poderá contribuir para agravar o problema das enchentes na Vila Santa Cecília. E pode provocar alagamentos na pista de rolamento da Rodovia dos Metalúrgicos. “A obra está acabando com a lagoa, que funcionava como uma represa de controle de vazão para o córrego Cafuá, onde o sistema de drenagem (feito pelo grupo CP) vai desaguar. As lagoas (dos dois lados na via) não deixavam a água fluir violentamente para o Cafuá, que deságua no Rio Brandão, que é o maior responsável pelas enchentes da Vila”, detalha, explicando que com o aumento do volume de água, todo o sistema Cafuá-Brandão será sobrecarregado. Isso, certamente, vai refletir nas enchentes na Vila”, sentencia.

 

Ela foi além. “O sistema Cafuá-Brandão está no limite. Jogar mais água lá é um risco enorme; pode alagar todos os bairros até a Vila, e piorar as enchentes no bairro. O novo sistema que está sendo implantado vai recolher água de toda a rodovia (dos Metalúrgicos) e também do que será construído na área, para desaguar no Cafuá. Tudo teria que estar muito bem dimensionado, e não sei se foi”, alerta. “Se a obra (do grupo CP) não der certo, ou se as manilhas entupirem, por exemplo, o alagamento na Rodovia dos Metalúrgicos pode aumentar. Ou seja, se der certo, há um risco. Se não der certo, também há risco”, pontua. 

 

Quanto à ideia da prefeitura de Volta Redonda de construir mini represas ao longo do Córrego Brandão para minimizar as enchentes na Vila, a fonte diz que o ideal seria fazer constantemente um trabalho de limpeza e correção de pontes, por exemplo, em todo o sistema Brandão-Cafuá. “Um levantamento que aponta todas essas correções, com elevação de pontes, eliminação de interferências como rochas e tubulações, já foi feito por um engenheiro da Coppe/UFRJ. Também há neste levantamento a ideia da construção de uma represa no Brandão, na altura da Casa de Portugal, mas é um projeto caro. Esses dados existem e deveriam estar em algum lugar da prefeitura, ou na secretaria de Planejamento, ou no IPPU-VR. Seria mais barato e eficiente que a construção de diversas mini barragens”, afirma. 

 

Fugindo da raia

Além de ouvir o secretario de Meio Ambiente, Maurício Ruiz, o aQui procurou entrevistar os ex-prefeitos Neto e Gotardo e ainda o Instituto Estadual do Meio Ambiente, para que todos falassem sobre o caso. Após contato telefônico e por e-mail, a assessoria de imprensa do Inea prometeu enviar suas respostas dentro do prazo estipulado, na quarta, 15, à tarde. Não mandou.

 

Depois, em contato telefônico, a assessoria do órgão informou que a questão estava na área técnica e que as respostas ao aQui seriam enviadas na manhã de quinta, 16. Só mandou na parte da tarde. E limitou-se a informar, em apenas duas linhas, que “vai investigar a denúncia”. Sobre o licenciamento para a obra do grupo CP, o órgão estadual afirmou a licença teria sido concedida ‘pela administração municipal’. Já o ex-prefeito Gotardo afirmou que estava viajando, motivo pelo qual não poderia atender à reportagem.  

 

Já o ex-prefeito Neto garantiu que a gestão dele nunca aprovou nenhum projeto para aquele local (Jardim Belvedere), e garantiu que o Inea chegou a ser alertado pelo seu governo sobre o problema da lagoa. “No que compete à prefeitura, no meu governo não deixamos aprovar nenhum projeto para lá, justamente por causa da lagoa. Avisamos ao Inea o que estava acontecendo, e o próprio Ministério Público chegou ao caso”, limitou-se a dizer.

 

Aplicativo gratuito

Como o aQui encontrou a lagoa desaparecida no Jardim Belvedere? Não foi preciso nenhum truque de mágica. Bastou usar uma tecnologia que está ao alcance de todo mundo, inclusive da fiscalização. E o que é melhor, totalmente de graça. Trata-se do aplicativo Google Earth Pro. Com a ferramenta, foi possível conferir o histórico da lagoa do Jardim Belvedere, sendo que em 2004, como mostra a foto, dá para ver que a lagoa tinha os 74 metros de comprimento e 40 de largura citados no início da reportagem. A medição foi feita usando as ferramentas disponíveis no aplicativo.

 

Em 2019, pode-se verificar a área que será disponibilizada, sem a lagoa, para a criação do condomínio do grupo CP ao longo da Rodovia dos Metalúrgicos. É imensa, praticamente do tamanho de um bairro.