sexta-feira, setembro 13, 2024
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Doce como um veneno

Uso de cigarro eletrônico tem preocupando pais e responsáveis; comunidade médica alerta para riscos à saúde do usuário

Vinicius de Oliveira

Conhecidos entre os especialistas como Dispositivos Eletrônicos para Fumo (DEFs) e entre os mais ‘descolados’ como ‘vape’ ou ‘pods’, os cigarros eletrônicos, além de coloridos, têm sabor de fruta, entrada USB para recargas e até luz de led. A fumaça que sai deles é espessa; muitas vezes, refrescante. Tem mais. Não deixa aquele cheiro insuportável de cigarro. Com tantas ferramentas de sedução, não poderia dar em outra: o dispositivo, que já é febre nos EUA e preocupa a comunidade científica americana pelos males que pode causar ao organismo, está viralizando entre os jovens brasileiros.
Segundo pesquisa recente do Datafolha, mais de 3% da população brasileira acima dos 18 anos já faz uso diário ou ocasional do cigarro eletrônico. Mesmo sendo proibidos no Brasil desde 2009 pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), nas médias e grandes cidades, os cigarros eletrônicos podem ser adquiridos facilmente. Em Volta Redonda também.
É possível, por exemplo, encontrá-los em tabacarias mais ousadas, em barraquinhas de mercados populares ou até com ambulantes nas portas das baladas, isso porque a proibição da Anvisa não impediu a expansão do mercado ilegal e do número de adeptos. Para se ter uma ideia, a maior empresa de tabaco do país, a BAT Brasil (antiga Souza Cruz), estima que hoje 2 milhões de brasileiros consomem os cigarros eletrônicos não regulamentados. Na cidade do aço, o dispositivo não está à venda em qualquer esquina, mas não significa que o acesso seja impossível. O aQui entrou em contato com as principais tabacarias da cidade, nenhuma delas tinha para vender, mas todas orientavam o repórter a pesquisar e comprar pela internet, em sites como o Mercado Livre. Os preços variam conforme o tipo de cigarro, mas nunca é barato. As opções vão de R$ 170 a R$ 200, sendo que o comprador pode escolher pelo sabor, pelo formato ou até pela quantidade de baforadas que o aparelho é capaz de suportar antes de ser recarregado ou descartado.
Lucas Vieira, um jovem gamer volta-redondense que vive no Rio de Janeiro, conta que a ideia vendida junto com o cigarro, de que são usados por jovens ricos, atraentes e descolados, seria o motivo para o interesse crescente deste tipo de dispositivo para fumo. “Tem relação com o dinheiro, sim. O cigarro eletrônico é mais cool, mais descolado, principalmente pelo design. Além disso, o estilo de vida do dono da marca é luxuoso, sempre cercado de mulheres. Então, eu tenho a impressão de que começou mesmo como um produto elitista”, pontua, salientando que o mercado já produziu até alternativas mais baratas para incluir os que não conseguem pagar o luxo do cigarro eletrônico. “Sim, já existem vapers falsificados que são bem mais baratos para atingir um público que não quer gastar tanto com isso”, comentou.
Na opinião de Lucas, em Volta Redonda os DEFs colaram mais entre os jovens com melhor condição de vida não só pelo preço, mas, principalmente, por encarar os dispositivos como uma marca que os diferenciam de usuários de drogas como a maconha. “No Rio, fumar tabaco ou maconha não é sinônimo de pobreza ou riqueza, mas em Volta Redonda eu acho, palpite meu, que a maconha, o tabaco orgânico e o kumbaya não são tão populares. As pessoas não veem como uma atitude que gere desejo. Enquanto o pod é mais ‘descolado’, tem luz, sabor, preço alto. E o ato em si de fumar é bonito”, avaliou.
O operador DayTrade Carlos Eduardo, morador de Volta Redonda, 32 anos, confirma a tese de Lucas. “Nas festas que frequento tem gente fumando cigarro eletrônico. É delicioso, divertido e descolado e não passa aquela má impressão de ilegalidade. Eu estou totalmente viciado”, admitiu, indo além. “Ele não deixa cheiro ruim, como acontece com cigarros convencionais. Quem vê outra pessoa fumando um vaper não vai considerá-lo um fumante, mas sim um usuário de vaper. Parece que não tem diferença, mas tem. Pelo menos na percepção das pessoas”.
O mais curioso é que os cigarros eletrônicos foram anunciados como uma alternativa segura ao tabagismo. “Por não haver combustão do tabaco e, consequentemente, produção de centenas de substâncias cancerígenas, criou-se a ilusão de que seu uso seria menos prejudicial aos pulmões e ao organismo como um todo”, explica o médico pneumologista da faculdade de medicina do ABC Elie Fiss. “O ‘inofensivo’ aparelho produziu centenas de casos de uma misteriosa doença pulmonar, inclusive com mortes recentes nos EUA. A causa exata ainda não é clara. Uma hipótese é de que algumas reações entre o componente oleoso do produto e a nicotina produzam o que a comunidade médica chama de pneumonia lipoide ou pneumonia lipídica: depósito de gordura nos alvéolos dos pulmões, que impede a respiração normal”, completou.
No Brasil, algo parecido já pode estar em curso. O influenciador Lucas Vianna, que foi o vencedor do reality show ‘A Fazenda 11’, informou através de suas redes sociais que precisou ser socorrido durante uma festa realizada no último dia 26 de junho, tendo sido internado por conta do uso exagerado do cigarro. Em sua postagem, explicou que sofreu com falta de ar. “Eu estava em uma festa e de repente me faltou o ar de um jeito surreal. Parecia que estava tudo entupido, como se estivesse afogando. Fui socorrido, me deram um aparelhinho de oxigênio. Tudo isso aconteceu por conta de cigarro eletrônico, vaper”, afirmou Lucas, pelo Instagram. E ele não foi o único; até o cantor sertanejo Zé Neto diz estar com problemas pulmonares decorrentes do hábito de usar cigarro eletrônico.
Segundo estudo realizado pela PUC Minas em parceria com a Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz (FAG) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os cigarros eletrônicos são perigosos, pois produzem um aerossol que é inalado pelos usuários e podem conter inúmeras substâncias químicas, como a nicotina, aromatizantes, derivados do cannabis, propilenoglicol, glicerina vegetal e até mesmo metais pesados, como chumbo, ferro e carbono. “Com o aumento da popularidade dos cigarros eletrônicos, um novo desafio para a saúde pública surgiu: doenças respiratórias associadas a indivíduos que utilizam o CE. “Diante disso foi criado o termo EVALI (E-cigarette and Vaping Associated Lung injury), que aborda quadros de usuários do cigarro eletrônico com disfunções pulmonares não associadas a nenhuma outra patologia, facilitando a identificação e publicação destes casos”, observou o estudo.
Além de problemas bucais, também estão associados ao uso do vape a falta de ar, a tosse e a expectoração sanguínea, que podem evoluir para uma insuficiência respiratória e até infarto. Pesquisas apontam, inclusive, que países que liberaram a comercialização do cigarro eletrônico registraram aumento de eventos cardiovasculares em pessoas com menos de 50 anos.

Anvisa mantém proibição
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) manteve a proibição da venda, da importação e da publicidade dos cigarros eletrônicos, popularmente chamados de vape. O posicionamento foi definido em votação unânime dos diretores, que aprovaram uma Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) sobre o produto em reunião extraordinária na quarta, 6.
Com o aval, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da Anvisa sobre cigarros eletrônicos, em vigor desde 2009. deve ser aprimorada. “Nenhum cigarro eletrônico é permitido para uso no Brasil. Isso (a decisão) é importante porque legitimiza a nossa luta contra o cigarro eletrônico, que é um dispositivo que vem sendo cada vez mais usado, especialmente entre jovens, e está criando uma geração de indivíduos dependentes de nicotina. E isso é tudo o que a gente não quer. A gente não quer que essa geração caia na armadilha de gerações do século passado, que sofreram com as consequências do vício em nicotina”, afirmou o diretor da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT), Frederico Fernandes.

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