Ser ou não ser hostil…

IPPU-VR contratou 10 arquitetos e quatro engenheiros para emitir laudos de acessibilidade em prédios antigos. Quanto aos problemas de arquitetura hostil, bem... deixa isso pra lá.

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Por Vinícius de Oliveira

A promessa do Palácio 17 de Julho de que Abimailton Pratti da Silva, presidente do IPPU-VR (Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Volta Redonda), iria estudar todos os casos de arquitetura hostil existentes na cidade do aço tem tudo para não ser cumprida. Muito pelo contrário. “Nosso foco é a mobilidade”, sentenciou ao ser entrevistado pelo aQui para explicar o que o órgão estaria fazendo para cumprir a Lei federal Padre Júlio Lancellotti, de número 14.489, de 2022.
Tendo ao lado a arquiteta Sandra Cristina Paiva Pinto, que é sua chefe de gabinete, Abi- mailton revelou que a preocupação principal do órgão tem mais a ver com o Ministério Público, que estaria cobrando ações efetivas acerca da mobilidade por parte do governo Neto. “Nossa briga agora é com relação às calçadas (dos particulares, grifo nosso). Não podemos aceitar um passeio que não proteja o transeunte. Não pode o morador ficar colocando ‘ferrinho’ na cidade toda”, ralhou o presidente do IPPU, consciente de que mandar retirar todos os elementos que atrapalham o livre acesso dos pedestres em calçadas é uma
tarefa que a prefeitura não tem pernas para realizar. “Não temos fôlego pra isso. Teríamos que criar uma taxa para intimar a pessoa a tirar”, analisou.
Abimailton, que não chegou a abordar a situação caótica das calçadas da Rua 33, por exemplo, que voltaram a ser quebradas pelo Poder Público (ver foto), foi além. Disse que o que o IPPU quer é achar uma solução a respeito da acessibilidade ou a falta dela em Volta Redonda. “Contratamos 10 arquitetos e quatro engenheiros para emitir laudos de acessibilidade como forma de tirar a hostilidade de muitos prédios que são antigos. Se fizermos uma conta por baixo, deve ter em torno de 600 prédios públicos assim”, estimou.
Quanto à nova lei sobre arquitetura hostil propriamente dita, vejam só, não há nem consenso dentro do IPPU. De acordo com a arquiteta Sandra Cristina, o conceito de hostilidade varia conforme a visão de cada um. “O que pode ser hostil para mim pode não ser pra você. A lei não deixa claro isso. Vamos pensar nas discussões sobre os bancos da praça. Não podem ser muito grandes ou não contemplam os cadeirantes; se não tiver apoio de braço, o idoso
não consegue se apoiar na hora de sentar ou se levantar. Mas se o banco for pequeno e contar com apoio, a pessoa em situação de rua não pode deitar. Estamos quase na linha de construir um banco para cada um”, ironizou, afirmando que seria necessária uma padronagem nesses casos.
Quando questionados sobre os casos mais agressivos, cuja intenção seria apenas evitar que pessoas em situações de rua possam se abrigar da chuva ou mesmo dormir embaixo de marquises – caso do Ponto Frio, na Vila (ver foto), entre outras, e até a ‘cerca’ instalada no Escritório Central da CSN –, Sandra nem titubeou: “São propriedades privadas e o proprietário tem direito de colocar grades para proteger a sua propriedade. Na minha casa eu faço o mesmo, pois não quero ninguém entrando ou dormindo nela”, argumentou, dando como líquido e certo que a calçada do Condomínio Justina Mollica (onde fica a loja do Ponto Frio) pertence ao imóvel. Que seria realmente do condomínio.
Há quem discorde. Um ex-funcionário do IPPU-VR, por exemplo, procurado pelo aQui, foi taxativo. “A calçada do Justino Mollica é uma área pública”, disparou, indo além. Diz que a marquise do prédio pode até existir. “Mas isto não torna a área embaixo da marquise privativa”, definiu. “O correto é a prefeitura intimar (o condomínio) a retirar a cerca entre o prédio e a pracinha que existe até a agência do Banco do Brasil”, acentua. “A marquise, sem a cerca, servia para proteger as pessoas do sol e da chuva quando saíam do BB”, justifica. “Nem sei se a prefeitura autorizou o Justina Mollica a colocar aquela cerca ali”, disse. “Fere a lei da arquitetura hostil”, encerrou.
A chefe de gabinete de Abimailton discorda e lembra que as leis que versam sobre arquitetura hostil – tanto a federal, criada pelo senador Fabiano Contarato (PT- ES), quanto a local, de autoria do vereador Raone (PSB) – tratam exclusivamente de espaços públicos. E, seguindo essa linha de raciocínio, tanto Sandra quanto Abimailton, ao serem questionados sobre o Memorial Zumbi e suas grades pontiagudas, garantem que elas não se enquadrariam como hostil. “O local (Memorial Zumbi) precisa ser protegido da depredação. Precisa estar em perfeitas condições de uso sempre que o público precisar usar”, resumiu Abimailton.
Sandra vai além. Crê que, mesmo se o Memorial Zumbi não fosse gradeado, ninguém se abrigaria lá, apesar de oferecer um espaço amplo e coberto para os dias de chuva. “Por que ninguém dorme embaixo da biblioteca? É porque essas pessoas procuram os espaços privados, pois sabem que lá a prefeitura não os alcança. Se estiverem num lugar público, a guarda pode removê-los, mas no privado é o proprietário o responsável por zelar o espaço”, teorizou, afirmando que há contrapartida do Poder Público para atender essas pessoas. “O problema é que muitas não querem seguir as regras dos abrigos e aí não aceitam ajuda”, disse.
Abimailton e Sandra se esqueceram – ou não quiseram tocar no assunto – que, entre a Biblioteca Municipal e a Galeria de Artes Zélia Arbex, a própria prefeitura de Volta Redonda fez ‘um puxadinho’ (ver foto) para evitar que moradores
em situação de rua usassem o espaço para se abrigar. Depois da publicação da foto no aQui, a cerca foi devidamente retirada por ser uma afronta à Lei do Padre Lancelotti.
O arquiteto Ronaldo Alves, ex-presidente do IPPU-VR, também foi procurado para falar a respeito dos casos de arquitetura hostil. E, para surpresa geral, ele contou que o projeto do Memorial Zumbi nasceu praticamente na sua prancheta de trabalho. “O Memorial Zumbi foi construído em um espaço que estava ocioso e que não possuía características de praça. Por acaso, o autor da ideia fui eu mesmo, com um projeto que elaborei para o Movimento Zumbi dos Palmares. Eles levaram o projeto para o Wanildo de Carvalho (prefeito na época) e pediram para a prefeitura construir. O Wanildo passou o projeto para o Celso dal Belo, que era seu secretário de Planejamento. O Celso aproveitou a ideia, mas modificou o projeto com aquelas características que você vê no local”, detalhou.
Segundo Ronaldo Alves, o Memorial inseriu- se na paisagem urbana da Vila Santa Cecília e não “se constitui em um entrave à vida normal da comunidade”. Muito pelo contrário. “Sempre fui a favor”, destacou. “Essas coisas (lei da arquitetura hostil) têm de ser evitadas, com outras soluções para o acolhimento das pessoas sem teto ou decididas a permanecer nas ruas”, ponderou, apresentando uma sugestão às atuais autoridades. “Uma casa, ou algumas, de acolhimento dessas pessoas seria ideal para romper com soluções hostis tais como obstáculos para que não durmam na rua. Trata-se de questão social importantíssima. Se existem pessoas entrando à noite no Memorial, a questão é a mesma. Sem isso, as soluções agressivas para impedir o acesso vão continuar em outros locais, e a coisa vai continuar a crescer”, justificou. “Arquitetura hostil não vai solucionar o problema. A tendência é gerar conflitos cada vez maiores e indesejados”, acredita.


Wiliam Fernando Gomez, arquiteto e urbanista, professor de arquitetura do UGB, colaborador do MEP e conselheiro do CAURJ (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro), tem opinião parecida. “Esse é um conceito muito novo e ainda precisa ser debatido. Mas uma coisa é fato: a intencionalidade é um fator decisivo. Se tomarmos como exemplo a passagem superior da CSN, na Vila, há sim arquitetura hostil. Chapas de alumínio pontiagudas e perigosas foram colocados no caminho com a intenção clara de impedir que as pessoas se reunissem. Aquilo é perigoso e precisa ser retirado. Alguém pode facilmente se machucar. Mas não penso o mesmo dos tapumes que cercam (já foram retirados quando o serviço de gradeamento foi completado) o Escritório Central. Apesar de existir para evitar a permanência de pessoas em situação de rua, a empresa está em seu direito de proteger a propriedade além do que o cercamento foi feito dentro dos limites da propriedade e não invadiu nenhum espaço público”, analisou.
Para o professor, faltou responsabilidade social da CSN para com as pessoas em situação de rua que usavam a cobertura oferecida pelo Escritório Central para se abrigar. “É de extrema importância que a iniciativa privada estabeleça parceria com o Poder Público para garantir que pessoas em condição de rua sejam devidamente atendidas e não precisem estar nesse lugar”, disse William, que passou a falar sobre o gradil do Memorial Zumbi dando uma versão diferente da apresentada por Ronaldo Alves, ‘pai da criança’. “Lá foi um espaço aberto por muitos anos. Fecharam para evitar depredações”, acredita.
“As grades que o protegem (Memorial) não oferecem risco a ninguém e nem têm o claro objetivo de hostilizar, são mesmo para proteção do patrimônio público”, entende, afirmando que vê hostilidade embaixo de viadutos e em tipos de arquitetura como a do banco Santander, também na Vila. “Nestes lugares foram adotados elementos hostis, que impedem o acesso das pessoas e sua proteção. Já não vejo isso acontecendo no Largo Nove de Abril, por exemplo, que tem características de espaço público, mas é privado. E
é importante que as pessoas não confundam o público com o privado e nem proteção com hostilidade”, compara.
Na esteira da discussão sobre hostilidade arquitetônica, há quem entenda que até a Cúria Diocesana possa ser incluída nesse universo por conta da cerca existente em toda a extensão da Igreja Santa Cecília (ver foto). Em nota, a instituição explica que a estrutura metálica em torno do templo não pode ser considerada hostil. “O gradeamento da Igreja de Santa Cecília, e de outros templos católicos e não católicos – assim como o de prédios públicos e privados – não pode ser tomado como exemplo da dita arquitetura hostil. Afinal, o gradeamento em questão se destina unicamente a preservação do patrimônio contra adversidades dos mais variados tipos. Portanto, não consideramos que o gradeamento da Igreja de Santa Cecília seja um exemplo de Arquitetura Hostil”, argumenta a
Diocese.
Na nota, a Cúria aproveita para elogiar o trabalho desempenhado pelo padre paulistano Júlio Lancelotti, grande entusiasta da discussão em torno da arquitetura hostil e coordenador da pastoral de rua onde atua como sacerdote, mas logo avisou que não concorda com pessoas vivendo embaixo de marquises ou dormindo nas calçadas. “A reflexão proposta pelo padre Júlio Lancelotti, denominada arquitetura hostil, revela- se útil se considerarmos que as marquises e as pontes, das médias e grandes cidades, se impõem como última saída para muitas pessoas que se encontram em situação de rua. Todavia, há de se considerar que uma marquise não é abrigo digno e satisfatório para o ser humano. Tal constatação exige de nós e de toda a sociedade mais do que uma desobstrução de marquises e pontes, mas uma ampla discussão do direito à moradia, coisa que, na realidade específica de Volta Redonda, foi contemplada no último Plano Diretor, mediante sugestão apresentada em diálogo entre representantes do executivo municipal e membros do governo diocesano. Essa informação foi amplamente divulgada pelos veículos de comunicação da região. Na verdade, não há consenso dentro da instituição sobre o que é arquitetura hostil”, pontua.


Thaísa Folgosi Froes Ventura, mestre e autora da tese ‘Interface entre espaço público e privado: a influência da legislação na produção do espaço urbano’, lembra que os elementos arquitetônicos hostis passam quase despercebidos. “O problema é que na cabeça de quem instala trambolhos metálicos num banco de praça, pinos pontiagudos nu- ma mureta ou até floreiras em frente a uma vitrine, o que se quer é evitar que mendigos e transeuntes cansados ocupem indevidamente locais destinados à circulação, a compras, e possam representar, além de danos à imagem dos lugares, ameaças à higiene e à segurança. No entanto, o resultado dessas ações é o bloqueio à plena e saudável utilização dos espaços públicos e daqueles na fronteira entre o privado e o público, o que piora o padrão da cidadania”, afirma.
Ela vai além. Defende que os espaços públicos promovam a socialização e o encontro de pessoas diferentes entre si e por isso a premissa de estrutura inclusiva deve ser mantida. “Eles obrigam o exercício da tolerância e da convivência entre diferentes perfis, crenças e ideologias. Desta forma defendemos a cidade que traz as pessoas para a rua, para o âmbito público – para observar, para serem vistas, para interagir, questionar, descobrir, entender, encontrar”.
Para Wiliam Fernan do Gomez, colaborador do MEP, no entanto, pensar que o Poder Públi- co, quando fizer planejamento urbano, deve levar em consideração pessoas que vivem nas ruas e garantir lugares propícios para elas seria “subverter a ordem natural das coisas”. “Ninguém deve viver em situação de rua. Isso fere a lógica da dignidade humana. A arquitetura deve garantir livre acesso à cidade para todos e não um lugar para que as pessoas durmam. Sobre essa questão é fundamental a presença do Poder Público com políticas efetivas que tirem cidadãos da condição de morador de rua”, defende.
O vereador Raone Ferreira, autor da lei municipal que trata da arquitetura hostil, tem uma posição bem clara sobre o assunto, que não vai agradar a Abimailton, presidente do IPPU-VR. “A lei municipal está seguindo o que determina a lei federal, que é uma alteração do estatuto das cidades. Ficamos limitados ao que a lei federal determina. E, de fato, ela acaba versando sobre espaços públicos e interface de uso privado, o que se justifica, por exemplo, com relação a CSNeoqueelafezno escritório central. Lá, por ser uma área de conexão direta com a calçada, entra no entendimento das interfaces de uso público com privado. Uma cobertura é de uso comum, ainda que seja privada. E não se pode limitar o uso de uma cobertura para qualquer cidadão, seja eu, você ou morador em situação de rua. Todos têm direito de se abrigar da chuva, por exemplo”, argumenta. “A discussão é ampla e precisa ser debatida também no Plano Diretor”, defende.