“Um defeito de cor”

Racismo estrutural ainda é o principal desafio para o povo negro; falta de educação antirracista e uma abordagem desproporcional de policiais comprovam o fato

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Por Vinícius de Oliveira

O título acima ecoa não apenas como o nome de um livro impactante, mas serve para uma reflexão acerca da história do povo escravizado no Brasil. Escrito pela publicitária Ana Maria Gonçalves, o romance histórico de 1200 páginas narra a saga de Kehinde, trazida à força do reino de Daomé para a Bahia colonial. A narrativa aborda estupros, desumanização e todas as formas de violência contra um corpo negro. A obra, baseada em fatos reais, ilumina os acontecimentos que serão abordados nesta matéria, destacando como casos semelhantes persistem até os dias de hoje.
A poucos dias do Dia da Consciência Negra, dois episódios devem marcar os atos do movimento negro volta-redondense. O primeiro aconteceu no último final de semana. Mãe Célia Soares, renomada babalorixá de Volta Redonda, levantou questões sobre
uma possível negligência estrutural no Memorial Zumbi, na Vila, durante o 6o Festival de Curimba do Sul Fluminense. Com um discurso incisivo, a líder espiritual destacou a disparidade de tratamento oferecido pela prefeitura entre espaços não exclusivamente negros, como a Biblioteca Municipal, cuja reforma custou cerca de R$ 286 mil aos cofres públicos, e o Memorial Zumbi, “relegado a condições deploráveis, com banheiros em estado precário e iluminação deficiente”.
Para Mãe Célia, a situação evidencia um triste padrão de descaso em relação aos locais destinados à comunidade negra. Ela questiona, inclusive, por que o Poder Público privilegia alguns espaços em detrimento de outros, perpetuando a ideia de que tudo destinado aos negros pode ser mantido de qualquer jeito. A líder espiritual, com sua voz
trevosa como a de um orixá na terra, provocativamente indagou: “Por que tudo para o preto é descuidado? E, para o branco, não?”.
Na quinta, 17, a poucos metros de onde Mãe Célia fez sua denúncia, o exator Rubens Sabino, que interpretou o personagem Neguinho no filme ‘Cidade de Deus’, foi abordado por dois PMs próximo ao Sider Shopping. Rubens, que atualmente vive em situação de rua e ganha a vida vendendo paçoca por Volta Redonda, teria ameaçado um ambulante com uma arma branca. Os policiais o abordaram para efetuar a revista, mas na hora do procedimento o prensaram numa parede dentro das dependências do shopping. Foi nessa hora que alguém começou a filmar e registrou os gritos de Rubens. “Estou esperando minha namorada. Acabei de comprar um livro sobre segurança pública. Eu não
sou bandido”, dizia o exator, visivelmente perturbado com a situação. O vídeo foi publicado em primeira mão no Instagram e no site do aQui.
Em nota, a assessoria do Sider Shopping afirmou que nada teve a ver com o episódio. “Houve um princípio de tumulto fora do shopping, na Rua Doze, envolvendo dois rapazes, que culminou com uma abordagem policial na porta do empreendimento. Rapidamente a polícia militar levou o rapaz, logo após o momento em que foi gravado o vídeo. O Sider Shopping informou que não interferiu na abordagem nem tem conhecimento do motivo”, explicou.
A PM também se manifestou através de nota. “A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que uma equipe do 28o BPM (Volta Redonda) foi acionada para verificar uma ocorrência de ameaça, nesta quinta-feira (16/ 11), na Rua 14, Vila Santa Cecília, em Volta Redonda, em frente ao Sider Shopping. De acordo com as informações do solicitante, um homem teria ameaçado a vítima com uma arma branca. No local, ambos foram localizados e o acusado, que estava exaltado, precisou ser imobilizado para que a revista fosse feita e nada foi encontrado. Neste momento, o acusado começou a gritar acusando os policiais de racismo e tentou fugir. Os policiais solicitaram apoio e os envolvidos foram encaminhados à 93a DP”, diz a nota. De acordo com a PM, Rubens foi autuado por ameaça, resistência, desobediência e desacato. “Cabe ressaltar que o homem possui quatro anotações criminais por roubo e furto. Após serem ouvidos, o acusado e a vítima foram liberados pela autoridade policial”, finaliza a assessoria da Polícia Militar.
Segundo Sid Soares, líder do movimento negro da cidade, intelectual da cultura africana e pai de santo, o incidente no shopping amplifica a urgência das preocupações levantadas por Mãe Célia Soares. Para ele, a disparidade de tratamento se estende além das estruturas físicas, e a comunidade negra continua a enfrentar desafios, seja na preservação de espaços culturais ou na busca simples por segurança sem ser alvo de preconceito. “Pelas questões do racismo estrutural, pela própria mente dos educadores, dos diretores escolares, é tão difícil vermos uma equipe pedagógica de fato engajada a levar as pautas da diversidade e de questões raciais para dentro dos espaços educacionais. Aí a gente vê as forças de segurança abordando um jovem negro que acabou de comprar um livro. Independentemente de ter comprado ou não, mesmo sem deixar claro se ele está colocando alguém em risco ou não, o que está claro no vídeo é o racismo”, avalia.
Para Sid, tudo está interligado, e a ineficiência em tratar desse tema ou o simples descaso do poder público afeta ainda mais uma estrutura já combalida. “O poder público falha,
sim, em não olhar para espaços culturais pretos com o mesmo desvelo que olha para outros prédios públicos. Não me refiro só a estruturas materiais de tijolo e concreto, mas também a pessoas que são verdadeiros territórios culturais, como a professora Nilzete e o mestríssimo Pedrão da Água Limpa. Eles estão ali, andando no dia a dia de nossa cidade, e são espaços culturais, territórios vivos, ancestrais, que ainda estão presentes entre nós e são pouco privilegiados e prestigiados”, analisou o líder religioso.
Especificamente acerca do incidente no shopping, Sid aponta que casos do tipo são comuns graças a problemas estruturais na educação do povo brasileiro. “Temos dificuldade de acesso à educação que nos represente. Voltamos a 2022, quando a cada quatro horas um jovem negro estava sendo assassinado. Sabemos que na base dessa pirâmide o homem preto está ao lado da mulher preta, apesar de muitos dizerem que não, que apenas a mulher negra está na base. Os dois estão em pé de igualdade, pois sabemos que os homens negros jovens são os que mais morrem, os que estão nos presídios superlotados, os mais mutilados, as principais vítimas de estupro”, completou Sid.
Conhecido de Sid, o vereador Deco, de Barra Mansa, saiu em defesa de Rubens. “Ele é extremamente inteligente, só preferiu ficar na rua vendendo seus doces, é seu sustento. Ficou famoso no filme, mas passou a denunciar a estrutura racista das corporações e diz que vive melhor na rua do que quando era ator da Globo. Vira e mexe, sai de Volta Redonda. Nunca causou nenhum tipo de problema”, garante.