Por Pollyanna Xavier
Há quase seis décadas, exatamente no dia 25 de novembro de 1960, três irmãs foram brutalmente assassinadas pelo ditador Rafael Leônidas Trujilo, da República Dominicana. As três combatiam fortemente a ditadura imposta por Trujilo e pagaram com a própria vida. Os corpos foram encontrados no fundo de um precipício, estrangulados e com os ossos quebrados. O caso ganhou grande repercussão e pouco tempo depois o ditador foi assassinado. Quase 40 anos após o triste episódio, a ONU instituiu o 25 de Novembro como Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher.
Apesar de reconhecer a gravidade do crime e instituir um dia de reflexão sobre a situação de violência em que vive considerável parte das mulheres em todo o mundo, não há o que comemorar nesta data. No Brasil, por exemplo, um levantamento do Centro de Atendimento à Mulher, da secretaria Nacional de Políticas Públicas, mostrou que em 2017, 43% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente; para 35%, a agressão é semanal. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em média, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Os dados da Unicef apontam que mais de 100 milhões de meninas poderão ser vítimas de casamentos forçados durante a próxima década.
Só em 2017, 68 mulheres foram assassinadas na cidade do Rio de Janeiro. O número indica uma média de 5,6 casos por mês. Os feminicídios são os casos de mulheres mortas em crimes de ódio motivados pela condição de gênero. Em todo o país, a média de 2017 foi de 12 mulheres assassinadas todos os dias. Foram 4.473 homicídios dolosos, sendo 946 feminicídios. Em 2018, de janeiro a julho, o Ministério dos Direitos Humanos (MDH) já contabilizava 78 casos e 665 tentativas de assassinato de mulheres. A violência contra a mulher não é uma mazela apenas das capitais brasileiras; no Sul Fluminense, quatro municípios se destacaram em julho deste ano, por registrarem, cada um, pelo menos um feminicídio. Os casos aconteceram em Resende, Porto Real, Barra Mansa e Barra do Piraí.
Em Volta Redonda, mais de 100 mulheres são assistidas pela Patrulha Maria da Penha. O serviço é executado por guardas municipais (homens e mulheres) que garantem a efetividade de medidas protetivas concedidas pela Justiça. Na prática, as mulheres vítimas de violência e que conquistam a proteção da Justiça recebem visitas mensais e são assistidas com ações de emergência. A equipe é ligada à secretaria da Mulher, Idosos e Direitos Humanos (Smidh). A partir do comunicado da emissão da medida protetiva, feita por parceria entre a prefeitura e o Poder Judiciário, os patrulheiros do projeto entram em contato com a mulher agredida.
Segundo a GM Ilça Enalda Maria Romaneli, que atua na Patrulha Maria da Penha desde a sua criação, a primeira e a última visita são as mais importantes. “O objetivo do serviço é dar condições à mulher agredida de se posicionar perante à Deam e à Justiça”, contou. “Dou dicas de segurança, explico quando um fato caracteriza descumprimento da medida protetiva, ensino a vítima a unir provas contra o agressor – pois é necessária a apresentação de provas para que o agressor seja penalizado”, explicou.
Ilça Romaneli não trabalha sozinha. O GM Carlos Augusto do Nascimento acompanha as rondas e dá suporte às visitas cuidando da área externa da casa, porém, ele não conversa diretamente com a vítima. “A conversa com outra mulher deixa as vítimas de violência mais à vontade”, contou, acrescentando que o procedimento está previsto no decreto que criou a Patrulha Maria da Penha. De acordo com o Carlos, se houver enfrentamento por parte dos agressores, especialmente por conta do descumprimento da medida protetiva, o Ciosp é acionado.
O atendimento da patrulha é realizado em conjunto com o Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), responsável pela Casa da Mulher Bertha Lutz. O local existe há anos e funciona anexo à secretaria da Mulher, Idosos e Direitos Humanos, no bairro Nossa Senhora das Graças. Lá, a mulher conta com apoio psicológico, além de assistência social e jurídica. Só em 2017, seis homens foram pegos em flagrante e encaminhados à delegacia pela Patrulha Maria da Penha. Em 2018, de janeiro a julho, este número subiu para 23. “O número de prisões cresceu por conta de uma mudança na lei. Hoje, o próprio delegado da Polícia pode dar ordem de prisão para quem descumpre uma medida protetiva. No passado, somente o juiz podia fazer isto”, ex-plicou Dayse Penna, titular da secretaria da Mulher, Idosos e Direitos Humanos da cidade do aço.
Por enquanto, Volta Redonda é o único município da região que conta com uma secretaria voltada para assistência às mulheres. A pasta oferece não apenas a Patrulha Maria da Penha e o Ceam, mas também palestras e campanhas para promoção das políticas púbicas para mulheres, terapias holísticas, cursos profissionalizantes e artesanatos. A Casa Abrigo é outra alternativa oferecida pela secretaria que, como o nome diz, oferece abrigo às mulheres em situação de risco e vulnerabilidade. “É uma rede que garante às mulheres vítimas de violência completa assistência. Elas não estão sozinhas”, destacou o prefeito Samuca Silva.
Além de todo este aparato oferecido pela secretaria da Mulher de Volta Redonda, o município é pioneiro em uma parceria com o Poder Judiciário, justamente para garantir mais proteção e assistência à mulher agredida. Quando uma medida protetiva é expedida pela Justiça, o caso é comunicado à secretaria da Mulher, que coloca à disposição da vítima todos os serviços oferecidos pela pasta. “A Patrulha Maria da Penha também é acionada e os patrulheiros do projeto entram em contato com a mulher agredida. Se necessário, são feitas rondas pelos locais onde elas se sentem mais vulneráveis”, explicou Dayse Penna.
Desconstruindo o machismo
A secretaria da Mulher também oferece um programa voltado para os agressores, intitulado “Desconstruindo o Machismo”. Trata-se de palestras, conversas e orientações oferecidas aos homens que cometem violência contra suas mulheres. A adesão ao programa não é opcional, mas obrigatória para todos os agressores. Ao mesmo tempo em que comunica à Secretaria sobre a emissão de uma medida protetiva, o Judiciário também orienta o agressor que procure a pasta num prazo de 48 horas. É a partir daí que ele passa a fazer parte do programa.
De acordo com Dayse Penna, reuniões mensais são marcadas, sempre no fórum, para um bate-papo, com a participação da equipe Guardiões da Vida, composta por policiais militares. Entre outros assuntos, eles conversam sobre as implicações da Lei Maria da Penha, para que o agressor cumpra adequadamente a medida protetiva para evitar a prisão. “Desde que o serviço é prestado, 100% dos homens acompanhados cumprem corretamente a medida protetiva”, relatou Dayse.
Como denunciar?
A mulher vítima de agressão tem, hoje, várias maneiras de denunciar seu agressor. A própria secretaria da Mulher recebe denúncias do tipo. Mas existe também um canal direto – um telefone – para denúncias de agressão contra a mulher. Disponibilizado pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), que direciona o caso à Delegacia mais próxima, este número é o 180. A ligação é gratuita e pode ser feita tanto de telefone móvel quanto fixo. O ‘Ligue 180’ é um canal direto e gratuito de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina brasileira.
Além das violências doméstica, física e psicológica, o Ligue 180 registra casos de violência sexual, moral, patrimonial, obstétrica, no esporte, cárcere privado, crimes cibernéticos e agressões contra mulheres migrantes e refugiadas. As denúncias são encaminhadas para a Defensoria Pública e Ministério Público do Estado onde se encontra a vítima e ainda para outras instituições da rede de proteção das mulheres. Os casos de violência também podem ser denunciados via e-mail, pelo ligue180
@spm.gov.br
Morte por aborto é feminicídio?
Enquanto o Supremo Tribunal Federal quer descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação, médicos e especialistas defendem a classificação de mortes decorrentes de procedimentos abortivos ilegais como feminicídio. O tema polêmico é objeto de estudo da Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Uma pesquisa sobre o tema apontou que apenas as mulheres negras, pobres e sem antecedentes criminais são criminalizadas – e até agredidas psicologicamente – pela prática do aborto.
Segundo a Defensoria Pública do Rio, 42 mulheres respondem criminalmente, no estado, por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros. Para elas, os desdobramentos são ainda mais perversos, pois acrescentam o desgaste da criminalização aos riscos à saúde e à vida impostos pelas clínicas de fundo de quintal ou pelo procedimento feito no banheiro de casa. Todas foram enquadradas no art. 124 do Código Penal (“provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”), que prevê pena de detenção de um a três anos.
Em pouco mais de 30% dos casos, a investigação policial que deu origem ao processo judicial foi fruto da denúncia de hospitais em que a mulher foi atendida por conta de intervenção mal feita. Ou ainda de apelo de familiares que não sabiam como socorrê-la. Além de expostas a agressões, de sofrerem risco à saúde e de passarem pelo constrangimento de serem rés em processo criminal, há outras características comuns a essas 42 mulheres. Metade delas é negra, mãe e pobre (mais de 50% são representadas por defensores públicos). A maioria tem entre 22 e 25 anos e mora no município do Rio de Janeiro.
”A situação dessas mulheres é de extrema vulnerabilidade, pois em geral procuram atendimento médico porque se sentiram muito mal em casa, vindo a abortar, muitas vezes, no hospital público para o qual são levadas já em situação crítica”, observou a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública-RJ, Carolina Haber.
Segundo ela, é comum que a mulher demore a decidir pelo aborto por medo de ser descoberta, realizando o procedimento com a gravidez já em estágio avançado, sofrendo de forma mais drástica os efeitos do procedimento de interrupção da gestação. “Muitas acabam de abortar no banheiro do hospital e são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros, cujo papel seria justamente auxiliá-las num momento tão difícil”, comentou.
A pedido da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria, Carolina e equipe fizeram levantamento de todos os processos em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro relativos a aborto, no período entre 2005 a 2017. A ideia era traçar o perfil das mulheres criminalizadas pela conduta. Dados sobre tudo o que cerca o aborto são, quase sempre, extraoficiais. Calcula-se que, no Brasil, a cada minuto, uma mulher interrompe voluntariamente a gravidez. Todos os anos, pelo menos 155 mil delas são hospitalizadas na rede pública por complicações de intervenções temerárias.
“A realização da pesquisa é muito importante, no momento em que se discute no país a questão da criminalização do aborto. É preciso evidenciar que a criminalização incide sobre um grupo bem específico: mulheres negras e pobres, moradoras da periferia, a quem os mais diversos direitos são cotidianamente negados, provocando discriminação social inaceitável e inconstitucional”, ressaltou Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria.
Para Arlanza, o momento para discutir a criminalização do aborto é agora. “Está mais do que na hora de enfrentarmos a discussão: a quem atende a criminalização do aborto? Quem em nossa sociedade exerce o poder de determinar a vida e a morte de nós, mulheres?”, concluiu.