A professora Fátima Lima é a vice-prefeita de Barra Mansa
Por Vinícius de Oliveira
No apagar das luzes de 2023, o IBGE apresentou, com dados coletados em 2022, um retrato atualizado da população brasileira. O levantamento não só confirmou que a maioria absoluta dos brasileiros é negra como também apontou um dado relevante: pela primeira vez, desde 1991, o número de pardos é maior do que o de brancos. Enquanto os primeiros representam 45,3% do povo, os brancos são 43,5%. A parcela de pessoas que se autodeclaram pretas também aumentou. Agora, chega a 10,2%, um crescimento superior a 40% em relação ao último censo, de 2010. Só que não aumentou a representatividade dessas pessoas nos espaços do poder, mesmo com o decréscimo da população branca. O fenômeno é nítido no Sul Fluminense, sobretudo na esfera política.
Para se ter uma ideia, no Parlamento volta-redondense não há nenhum vereador que tenha se declarado à Justiça Eleitoral como sendo da cor preta. Pardos, existem dois: Cacau da Padaria e Edson Quinto. No poder Executivo, os brancos continuam ocupando espaços decisórios no Palácio 17 de Julho. O único secretário negro do prefeito Neto é o vereador licenciado Washington Uchôa, que comanda a Secretaria da Pessoa com Deficiência, uma pasta com pouco alcance político, apesar de ser de extrema importância para a sociedade. “Acredito que é uma grande responsabilidade ser um secretário participante de uma minoria dentro do governo, em especial quando a minha própria secretaria também representa uma minoria. Ao mesmo tempo, é uma grande honra poder contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”, pontua Uchôa, salientando ter total apoio do prefeito Neto. “A Secretaria da Pessoa com Deficiência e a prefeitura de Volta Redonda seguem noanode2024como objetivo de tornar nossa cidade um lugar para todos”, avalia o secretário que logo, logo deve deixar a pasta para buscar sua reeleição como vereador.
Eliege é presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-VR
Na Câmara de Barra Mansa, a representatividade é tão baixa quanto em Volta Redonda. O vereador Pissula é o único que se reconhece como preto, e não há nenhum pardo por lá, conforme dados da Justiça Eleitoral. A vantagem de Barra Mansa sobre a cidade do aço está na prefeitura, mais especificamente na figura da vice-prefeita, Fátima Lima, que, nesse contexto, emerge como a única mulher negra a ocupar o Executivo até o momento. Em entrevista aQui, Fatima destaca a importância crucial do equilíbrio na ocupação de cargos de decisão e influência, ressaltando a dura realidade de não se ver representada nos espaços de poder de outras cidades. “É imprescindível o equilíbrio da balança quando se trata de ocupação de cargos de decisão. A sub-representação é uma realidade na qual estamos mergulhados, mas lutando pra sair. Avançamos, mas muito pouco tendo em vista que representamos mais de 55% da população. Ainda somos invisibilizados pelo sistema. A ‘minoria’ tem de ter voz e vez através do processo de escolarização, participação, oportunidades iguais, quebra de estereótipos. Assim, chegaremos onde já deveríamos estar”, analisou.
Ela foi além. Lembra que enfrentou desafios desde seu nascimento, sendo o primeiro e mais difícil deles relacionado à sobrevivência. Diz que superou esses obstáculos com a ajuda de Deus e reconhece que a jornada não é fácil para ninguém, mas destaca a importância da crença na vida e no esforço pessoal para alcançar objetivos. “Os desafios, eu os enfrento desde que cheguei ao mundo. O primeiro é mais difícil: foi o de sobrevivência. Eu superei com ajuda de Deus e de muita gente. Fácil nunca foi nem nunca será pra ninguém, entretanto, os que acreditam na vida e se dispõem a trabalhar para alcançar seus objetivos conseguem chegar até o final. Os obstáculos precisam ser vencidos. Desejo à juventude negra que não desista do seu objetivo, suporte o processo, estude, tenha consciência do seu valor e, certamente, terá futuro êxitos, pois, como afirma Conceição Evaristo, ‘o importante não é ser primeiro, é abrir caminhos’”.
Letramento racial
Apesar de comemorar e nutrir esperanças no fato de que maioria absoluta do Brasil e também da região segue composta por negros, Eliege Domingos (foto), advogada especialista em direito civil e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-VR, vê com ponderada desconfiança o aumento dessa parcela da população. Apesar de admitir a possibilidade de uma tomada de consciência crítica acerca da leitura racial que cada um faz de si, ela diz que as políticas de cotas do governo Federal podem ter contribuído para esse fenômeno. “Importante destacar que tal aumento pode ser atribuído à tomada de consciência e letramento racial e também a conveniência, ante a ampliação da política de cotas. Assim, muitos indivíduos de pele branca se autodeclaram pardos para usufruírem desse direito que é destinado a pessoas negras (pretos e pardos)”, diz.
Eliege afirma que não é possível identificar os fatores que influenciam objetivamente a declaração dos habitantes do Sul Fluminense, no entanto, alerta para um fenômeno debatido pelos estudiosos do movimento negro que se desenrola nas entranhas da sociedade, imperceptível para a maioria: o racismo estrutural. “Devem ser considerados aspectos como o real não pertencimento dessas pessoas à categoria pardo, a falta de letramento racial e, até mesmo, o racismo, que leva o indivíduo a negar tudo o que o aproxime do ser negro”, observou.
Igor Souza, professor de Educação Física e especialista em História e Cultura Negra e Indígena de Volta Redonda, defende que a alternativa para resolver o problema da sub-representatividade nos espaços de poder passa diretamente pela educação, que deveria adotar uma perspectiva com viés decolonial, ou seja, a partir de uma visão afrocentrada do conhecimento até mesmo para garantir a ascensão de negros e negras que estejam, de fato, incorporados dos conceitos de negritude. “Do contrário, podem inadvertidamente perpetuar um contexto racista. Para evitar esse tipo de comportamento, é urgente um modelo educacional afrocentrado, para romper com a perspectiva eurocêntrica predominante. Apesar das leis que abordam essas questões na escola, as medidas são insuficientes, com ações pontuais ou inexistentes. Os debates sobre o tema deveriam ser integrados ao currículo, pois a negritude não se limita a novembro”, enfatizou.
Pensando nisso, a professora de História e implementadora da disciplina nos anos iniciais da rede pública de Volta Redonda, Bianca Maciel, garante que seu trabalho visa uma perspectiva pautada em conceitos afrocentrados com o objetivo de garantir benefícios a longo prazo. “O letramento racial é algo com que venho lidando há muito tempo. A ideia é levar professores e alunos a entenderem que a história da negritude no Brasil não começa com a escravização. Mas vem de antes. Somos descendentes de reis e rainhas e devemos ter orgulho disso”, defendeu Bianca.
Conforme explicam os professores, é através do letramento racial que não só negros e negras, mas também os brancos entenderão, por exemplo, que a primeira ferramenta para calcular de que se tem notícia foi desenvolvida por africanos 20 mil anos antes de Cristo, a partir do fêmur de um macaco babuíno chamado Ishango, ou mesmo que a filosofia já era praticada na África antes que os filósofos gregos a pleiteassem. “Há evidências cada vez mais seguras de que os gregos usavam pensadores africanos como referência. E isso é motivo de orgulho e identificação. A diáspora africana é apenas uma parte triste da história. Mas nosso povo é maior do que isso”, refletiu Bianca, reafirmando que a mudança de perspectiva é um processo longo e depende também da tomada de consciência crítica de cada docente.