Por Vinícius de Oliveira
A poucos dias da 6ª Parada do Orgulho LGBTI de Volta Redonda, marcada para 19 de agosto, a partir das 13 horas, na Praça Brasil, os movimentos sociais envolvidos na organização do evento pretendem chamar a atenção para o enfrentamento de todo tipo de violência contra a comunidade, como forma de resistência. Não é à toa que o tema deste ano é “A hora é agora. Não vão nos silenciar”. “Temos enfrentado todo tipo de preconceito. Os homossexuais de Volta Redonda estão morrendo, sendo expulsos de casa, perdendo empregos e impedidos de usufruírem de seus direitos como cidadãos. Até mesmo as instituições públicas têm se posicionado de forma homofóbica tentando, de todas as formas, impedir a realização da Parada. Infelizmente o governo municipal não tem feito muita coisa para mudar essa realidade que tem causado tanto sofrimento”, explicou Natã Teixeira, coordenador da ONG Volta Redonda Sem Homofobia.
Para Natã, dentre os integrantes da comunidade LGBTI, os ‘Ts’, que correspondem aos transgêneros (homens e mulheres que não se sentem à vontade com seu sexo biológico e se entendem como pertencentes ao sexo oposto) ultimamente são os que mais têm amargado ataques homofóbicos de todo tipo. Ele tem razão. O Brasil é um país hostil para a comunidade LGBT, mas no caso das travestis e transexuais, os preconceitos e dificuldades são ainda maiores. De acordo com um estudo divulgado em 2015 pela Transgender Europe, de 2008 a 2014, 604 transexuais/travestis foram assassinados no Brasil, o que torna o país o mais perigoso do mundo para estas pessoas.
Além disso, segundo estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 10% dos transexuais no Brasil têm emprego formal. Isso se deve a muitos fatores, mas o preconceito é o maior agravante para que essas pessoas sejam excluídas da sociedade. Muitas famílias não os aceitam e, por isso, esse grupo costuma sair de casa cedo, recorrendo a empregos informais e, na maioria dos casos, à prostituição. No Sul Fluminense a regra é a mesma. E quando esses indivíduos têm a oportunidade de fugir do padrão, mais uma vez se deparam com as barreiras da intolerância e da discriminação.
Aconteceu, por exemplo, com a voltarredondense Melyssa de Souza e Silva. Exceção à regra, Melyssa é uma das poucas mulheres trans no Brasil a cursar o Ensino Superior. Além disso, conseguiu uma façanha: foi selecionada para um estágio remunerado na área em que sonha atuar. E, quando tudo parecia perfeito, se viu imersa numa série de situações vexatórias e degradantes assim que notou que, na sua carteira de trabalho, ainda constava seu nome e foto de batismo. “Há mais ou menos um ano e meio comecei o processo de mudança de nome. Entrei na justiça para fazer a troca do nome e de sexo nos documentos. Consegui alterar a Identidade, o CPF e o título de eleitor. Até aí, tudo bem. Só que recentemente encerrei estágio na área de nutrição e precisei da carteira de trabalho. Foi só então que notei que lá continuava constando o nome e a foto antiga. Tentei marcar no Ministério do Trabalho de Volta Redonda a renovação, porém não havia horário disponível e resolvi marcar para Valença, para onde vou com certa frequência, sempre que visito meus pais em Rio da Flores”, conta Melyssa.
Ela vai além. Diz que, para sua surpresa, o funcionário do MT em Valença se recusou a fazer a troca dos nomes no documento. “No posto de atendimento eu solicitei a segunda via da carteira, apresentando a certidão do documento novo e todos os outros que são exigidos, já com meu nome social. O funcionário pegou os documentos e começou a escrever na parte de “alteração de nome”, no mesmo lugar onde uma mulher muda o sobrenome ao casar ou se divorciar. Mas eu não estava alterando só o meu sobrenome. Além do mais, precisava alterar sexo e a foto”, continuou Melissa, explicando que o funcionário se recusou a atendê-la. “Então indaguei o porquê dele estar fazendo só uma ‘observação’ e não a troca de tudo. Ele disse que só em último caso poderia fazer. Expliquei para ele que foi um constrangimento para mim. Mas ele se manteve irredutível e disse que só poderia fazer em último caso”, revela.
Ainda de acordo com Melyssa, a situação pela qual se viu obrigada a passar no posto de atendimento do MT foi vexatória e desmotivante. “Saí arrasada porque eu imaginava que trocaria o documento. Não tem porque minha foto e nome antigos ficarem estampados na minha carteira de trabalho. Fiquei muito chateada. Agora vou tentar marcar em Volta Redonda ou fazer um Boletim de Ocorrência por perda e, assim, tirar uma nova”, disse, sem esconder sua indignação. “Mas é um absurdo uma trans, mesmo após trocar de nome via justiça, ter de recorrer à delegacia para trocar a carteira de trabalho. Precisamos ser respeitadas”, desabafou.
Para Melyssa, houve falta de compaixão e de bom senso por parte do servidor que a atendeu. “Tenho visto falta de empatia por parte das pessoas. Eu não sabia o que falar naquele momento para ele. Eu não tinha argumentos e fiquei em choque. Mas depois, indo atrás dessas questões e me informando, descobri que tenho direito, após trocar de nome, de trocar todos os documentos. E os funcionários públicos precisam saber disso justamente para que outras pessoas não passem pelo que eu passei”, lamentou.
Melyssa não é a única a passar por uma situação humilhante desse tipo. Outro caso parecido aconteceu em Volta Redonda, e, desta vez, envolveu um homem trans e a Guarda Municipal. É o caso de João Eduardo, que se envolveu em um acidente de trânsito e, quando uma GM apareceu no local, seguiu os trâmites de praxe: pediu que os envolvidos apresentassem seus documentos. Foi aí que se deu a confusão.
Por ser transexual, João, já sabendo que poderia passar por algum tipo de constrangimento, assim que apresentou o documento, pediu para que fosse tratado pelo nome social e recebeu uma resposta que lhe abalou o psicológico. “Eu acionei a guarda porque um veículo havia batido no meu carro – no Aterrado, em frente à UFF. Dei meu nome social e pedi à guarda para ser tratado pelo mesmo. Ela disse que iria me tratar com o nome que estivesse no documento, eu retruquei e perguntei se seria necessário mostrar o ofício expedido pela defensoria pública. Então fiz o boletim com o nome social, pois já possuo alguns documentos com nome social, como RG, CPF, título de eleitor, cartão do SUS e o ofício”, contou João, afirmando que o pior ainda estava por vir.
“Ela [a GM] pediu para incluir o nome civil no boletim. Não me tratou com grosseira ou falta de educação, só me tratou como ‘meu bem’. Recusei. Não sabendo como agir, ela ligou para o seu superior na GM para pedir informações e esse superior pediu a ela para apreender meus documentos, pois eu não poderia usar documentos com nomes diferentes. Ela tirou foto, olhou, pegou todos os meus documentos e não apreendeu porque sabia que eu estava certo. Ela chegou a dizer que não seria certo ‘tomar’ meus documentos, pois estou amparado e protegido pela lei… fui dispensado e passei a informação para o Natã, do VR sem Homofobia”, disse.
Por pouco, além do acidente com o carro, João não se viu às voltas com outra dor de cabeça: recuperar seus documentos na GM de Volta Redonda. O pior é que o caso lamentável aconteceu pouco tempo depois da corporação ter passado, junto com agentes de outras forças de segurança de vários municípios, por um curso de capacitação onde aprenderam as abordagens corretas a pessoas trans. O palestrante foi o representante da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual/ Casa Civil do Rio de Janeiro, Jordhan Lessa, que é Guarda Municipal e homem trans, ou seja, uma sumidade no assunto. “Estive em Volta Redonda no final de 2017, dezembro mais exatamente, fazendo uma dessas apresentações para um auditório lotado de agentes de todas as forças da cidade e de cidades vizinhas. Por isso, quando fiquei sabendo do constrangimento que o amigo trans passou em uma abordagem da GM, fiquei bastante chateado”, contou Jordhan.
“Chateado por também ser trans e porque poderia ter acontecido comigo; chateado por ser Guarda Municipal do Rio há 20 anos e jamais ter feito uma abordagem que desrespeitasse alguém, mesmo que parecesse uma pessoa diferente aos meus olhos; e chateado porque a sensação de um bom trabalho desenvolvido junto à Seseg e aos agentes se esvaiu quando um dos profissionais que deveria primar pelo atendimento correto de uma pessoa trans não o fez e provocou constrangimento e violência psicológica desnecessária”, avaliou, decepcionado.
Para Jordhan, o preconceito dentro das instituições públicas é uma mistura de desinformação e falta de boa vontade por parte de alguns funcionários. “As instituições ainda tratam com bastante desconfiança e desconhecimento as pessoas trans, em especial os homens trans. Quando entra em pauta o assunto, somos confundidos com as mulheres Cis Lésbicas, com expressão de gênero extremamente masculina, causando e provocando uma invisibilidade ainda maior, deslegitimando nossas existências. Posso afirmar que as Instituições estão fazendo esforços para se adequarem às mudanças que a sociedade já vivencia em quase todas as áreas. Contamos com gestores de algumas secretarias, comandantes e departamentos jurídicos que já entenderam que não adianta fingir que nada está acontecendo, porém ainda nos deparamos com os profissionais que não querem e não fazem questão nenhuma de entender tais mudanças”, opinou.
Segundo Jordhan, somente com informação os casos de transfobia podem diminuir. “A sensação é de colocarmos a informação com uma colher e uma maioria tirar com uma pá, provocando o atraso na adequação necessária das Instituições em um país tão diverso como é o nosso Brasil. A boa notícia é que estamos nos multiplicando para levar a informação que julgamos ser fundamental para que novas gerações de agentes de segurança pública possam ter outro olhar sobre a diversidade, faço parte da Renosp – Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública, que é formada, como o próprio nome indica, pelos mais diversos profissionais da área espalhados por todo o Brasil, o que, no meu entender, é um grande avanço, pois demonstra objetivamente que somos muitos e estamos em todos os lugares, inclusive nas forças de segurança”.
Vale lembrar que pessoas trans como Melyssa e João Eduardo não devem se calar frente a qualquer tipo de ataque, seja ele provocado por desinformação ou por puro preconceito. “Cabe denúncia nas corregedorias de cada Instituição de Segurança Pública que pode ser a PM, PC ou GM (Polícia Militar, Polícia Civil e Guardas Municipais), pois a secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro está há mais de um ano trabalhando com GTs (Grupos de Trabalho) de populações vulneráveis e entre elas há o GT LGBT que eu faço parte. Fui pessoalmente a vários espaços institucionais RISPs, Batalhões e Quartéis, entre outros, para apresentar o novo aplicativo que todo profissional de segurança deverá usar e já está em teste em uma área específica da cidade do Rio de Janeiro para que possa ser observada a necessidade de ajustes, antes de levar para todo o Estado. Nessas apresentações é feito um trabalho grandioso para que tais situações constrangedoras deixem de acontecer, porém, sabemos que ainda levará um bom tempo para que os agentes de segurança deixem suas opiniões pessoais em casa e tratem todas as pessoas com o respeito que merecem”, disse Jordhan.
Nota da redação: A prefeitura de Volta Redonda foi procurada para comentar o caso de João Eduardo. Em nota, a secretaria de Comunicação disse apenas que “de forma geral, todos os cidadãos, independente de orientação sexual, são tratados com respeito e educação, com base na legislação de trânsito vigente”.
Renosp, um alívio para além da farda
Os casos de homofobia não acontecem apenas das instituições públicas para fora. Os ataques são corriqueiros também no interior dos pavilhões e batalhões. Soldados, policiais, bombeiros e guardas LGBTs têm de lidar, constantemente, não só com os perigos de morte impostos pela profissão de risco, mas, também, com o preconceito nem sempre velado que sofrem todos os dias dentro de seus locais de trabalho. Pensando nisso, integrantes de diversas forças de segurança do Brasil inteiro resolveram se unir para lutar contra a intolerância de gênero e o desrespeito e criaram o Renosp (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública).
Sempre que podem, os agentes de segurança, depois que se despem de suas fardas, se encontram via redes sociais para trocar experiências, dividir suas dores e, assim, reforçar a rede de apoios aos LGBTIs. Alexandre Almeida, voltarredondense que atua como GM em outro município, é um dos integrantes desse grupo. “Felizmente nunca sofri a homofobia diretamente onde trabalho. Mas a gente sabe que há o preconceito velado. Recentemente passei por um processo administrativo por um motivo muito bobo. Aí percebi que podem ter usado essa questão para me perseguir por ser gay”, relatou o guarda, preferindo não dar detalhes do caso nem dizer de qual corporação faz parte, com medo de sofrer represálias.
Segundo Alexandre, a informação e a desconstrução de valores não são incentivadas dentro de instituições como a GM, que tem raízes no machismo e segue diretrizes militares. “Não vejo nada que incentive o não preconceito ou que oriente os profissionais a terem essa consciência de que somos agentes de segurança pública e, assim, garantir a segurança de qualquer um. É por isso que existe esse preconceito que é enraizado no militarismo. E todas as instituições que copiam o militarismo trazem isso na bagagem”, criticou.
O Renosp começou no Instagram e já conta com milhares de seguidores. Os administradores publicam diariamente posts mostrando profissionais LGBTs das áreas de segurança. Pessoas corajosas que acreditam na luta contra o preconceito e ignorância predominante nestas instituições e na sociedade como um todo.
A proposta existe há alguns anos, mas ganhou força desde a semana passada, quando veio à tona a história do PM Leandro Prior, cuja vida virou um inferno quando alguém o gravou se despedindo de outro homem com um simples selinho no metrô de São Paulo.