Réus primários e sem antecedentes criminais, presos em flagrante sozinhos, desarmados e com pouca quantidade de droga, durante operações policiais realizadas em locais que supostamente seriam dominados por organizações criminosas. Esse é o perfil da maioria das pessoas que mais têm chance de serem condenadas pelos crimes de tráfico e associação ao tráfico na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro, revela pesquisa que a Defensoria Pública do Estado (DPRJ) e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça divulgaram no final do mês passado, durante o seminário ‘Tráfico e Sentenças Judiciais’, que a DPRJ promoveu em sua sede, no centro do Rio, e que contou com a participação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.
A pesquisa analisou 2.591 sentenças proferidas entre agosto de 2014 e janeiro de 2016, envolvendo 3.745 acusados de infringir a Lei 11.343/2006, que instituiu a Política Nacional Antidrogas. E concluiu: 53,79% das condenações basearam-se apenas nos depoimentos dos agentes de segurança que efetuaram a prisão. 91,16% das decisões não levaram em consideração as condições socioeconômicas e pessoais dos acusados. De acordo com os dados, poucas foram as sentenças em que os juízes analisaram esses critérios para diferenciar as condutas de tráfico e porte de drogas para uso pessoal.
A pesquisa ‘Tráfico e Sentenças Judiciais – Uma Análise das Justificativas na Aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro’ levantou os motivos que levam os juízes fluminenses a condenar pelos crimes previstos na Lei de Drogas, em especial nos artigos 33 (tráfico) e 35 (associação para o tráfico). Segundo Carolina Haber, diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da DPRJ, o objetivo foi verificar o tratamento conferido pelo sistema de Justiça às pessoas acusadas por esses crimes, tendo em vista o aumento expressivo da população carcerária após a entrada em vigor da Lei de Drogas, em 2006. A pesquisa identificou as 14 justificativas mais utilizadas pelos juízes na aplicação da referida lei.
Segundo o estudo, 91,06% das pessoas acusadas pelos crimes descritos na pesquisa são do sexo masculino e 59,39% estavam sozinhas no momento da prisão. Além disso, 77,36% não tinham antecedentes criminais, sendo que 73,85% eram réus primários. Em 48,04% dos casos analisados, os acusados foram presos com uma única droga: a cocaína (47,25% das apreensões foram de até 50 gramas) ou a maconha (49,72% de apreensões foram de até 100 gramas).
De acordo com Ricardo André de Souza, defensor público e subcoordenador de Defesa Criminal da DPRJ, a pesquisa mostra que 82,13% das prisões decorrem de flagrantes nas operações regulares realizadas pela polícia, seja nas ruas ou em unidades prisionais. Apenas 6% das prisões resultam do trabalho de investigação. “A pesquisa confirma que o foco das agências de segurança pública é o varejo do tráfico, corroborando a lógica de enxugar gelo. Essa forma, no entanto, não é uma falha, mas constitui e define a própria política criminal de drogas em seu regular e cotidiano funcionamento. É o que permite a manutenção do controle repressivo sobre as populações vulneráveis e territórios instáveis, geridos por meio do monopólio da violência por parte Estado”, explicou o defensor.
Justificativas dos juízes
Segundo o estudo, 53,30% das condenações referem-se ao crime de “tráfico”, previsto no artigo 33 da Lei de Drogas. Em 26,33% dos casos, os juízes condenaram os réus também por “associação para o tráfico”, conforme o artigo 35 da lei. Carolina Haber explica que uma das justificativas utilizadas pelos juízes para condenar os acusados pelos dois crimes em conjunto foram a presunção de que o réu integra associação criminosa, em razão do local da prisão. Segundo a pesquisadora, esse argumento foi apresentado em 40,92% das sentenças analisadas.
“Em 65,85% das vezes que o local é citado como ponto de venda de drogas, há menção à ocorrência em favelas, morros ou comunidades. Outro argumento usado pelos magistrados, em 36,56% das sentenças pesquisadas, foi o fato de o réu portar rádiotransmissor ou armas”, afirmou a pesquisadora.
A pesquisa também identificou outras razões que contribuíram para a condenação: comportamento suspeito (apontado em 31,07% das sentenças), modo de acondicionamento da droga (44,57%), dinheiro encontrado com o réu (22,40%), quantidade não condizente com uso pessoal (11,10%), tentativa de fuga (25,81%), droga na posse direta do réu (47,34%), droga na casa do réu (13,70%), droga encontrada com terceiros próximos ao réu (7,17%), droga encontrada próxima ao réu (15,46%), encontrado material para endolação (3,87%), drogas com identificação de facção criminosa (16,24%) e outras (15,95%).
Depoimento policial
Ainda de acordo com o estudo, em 62,33% das sentenças, o agente de segurança foi a única testemunha ouvida no processo e em 53,79% dos casos o depoimento dele foi a principal prova considerada pelo juiz para condenar o acusado. A justificativa usada pelos juízes para acolher o depoimento policial é a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que estabelece: “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
“A soma dos processos nos quais ‘agentes de segurança’ figuram como testemunhas é de 94,98%. Esse número precisa ser destacado porque os agentes de segurança são arrolados pelo Ministério Público, portanto estão alinhados com a acusação. Com isso, concluímos que, na grande maioria dos casos, estes agentes são os juízes de sua própria atividade, pois são eles que fornecerão as declarações que o juiz tomará como base para condenar ou não o acusado”, ressaltou Ricardo André.
Outro ponto destacado pelo defensor diz respeito ao número de sentenças não condenatórias. Do total de casos analisados, as absolvições chegam a 20% dos casos. Além disso, 36,51% aplicam penas alternativas à prisão. Na avaliação de Ricardo André, os dados admitem a conclusão de que tem havido um uso excessivo de prisões provisórias, na medida em que ao final do processo o aprisionamento se revela desnecessário.
Outro ponto importante da pesquisa diz respeito às penas fixadas. Em 69,40% das sentenças analisadas, os juízes aplicaram a pena mínima, explica Carolina Haber. De acordo com ela, embora a média da pena prevista para os casos de condenação pelo artigo 33, parágrafo 4º, seja de dois anos e três meses, o regime fechado foi aplicado em 27,9% dos casos, e a pena não foi substituída em 15,69%, apesar da determinação legal em sentido contrário.
“Apesar do Código Penal determinar o regime fechado para o cumprimento de penas superiores a oito anos, muitos juízes aplicam esse regime para condenações que reconhecem a diminuição da pena quando o réu não tem antecedentes, nem ligação com o crime organizado, como é o caso do tipo penal previsto no artigo 33, parágrafo 4º”, destacou a pesquisadora.