Vinícius de Oliveira
Desde janeiro, as regras brasileiras que envolvem identidade de gênero ganharam atualizações favoráveis à comunidade LGBT. A maior parte tratava do uso do nome social por transexuais. No Rio de Janeiro, por exemplo, o governador Luiz Fernando Pezão emitiu um decreto, por intermédio da Secretaria de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos, para que pessoas trans incluíssem seu nome social na carteira de identidade, evitando, assim, serem chamadas por nomes ligados a um gênero com o qual não se identificam.
Para o secretário estadual de Direitos Humanos, João Ricardo, a Carteira de Identidade Social é uma vitória para a população LGBT. “É um grande avanço para a população fluminense, que se mostra a favor da igualdade de direitos e se opõe a qualquer tipo de discriminação que um cidadão possa passar por não se enquadrar no padrão cisgênero”, defendeu, salientando que os funcionários do Detran, órgão responsável por emitir o documento, foram capacitados para o novo serviço. “Nós, por meio do Programa Rio Sem Homofobia, realizamos no ano passado várias jornadas de capacitação para profissionais do Detran a fim de sensibilizá-los sobre as demandas da população LGBT”, pontuou.
Embora a medida soe aos ouvidos do cidadão como um avanço sem precedentes na luta pelos direitos da população gay, entidades ligadas à defesa da comunidade não encaram da mesma forma e acabam desencorajando os transgêneros a realizarem a alteração na carteira de identidade. Volta Redonda, provavelmente a cidade do Sul Fluminense com maior representatividade de movimentos sociais voltados para o público LGBT, é um exemplo. De acordo com uma fonte ligada ao Detran-VR, apenas duas pessoas até hoje teriam requerido a nova identidade.
Segundo o coordenador da ONG Volta Redonda Sem Homofobia (VRSH), Natã Teixeira Amorim, o decreto que possibilita a inclusão do nome social na carteira de identidade da pessoa trans é “um direito disfarçado” e, talvez por isso, poucos se interessaram. “Para os que não têm a intenção de fazer a mudança de sexo ou mesmo não se importam de serem chamados pelo nome de batismo, a iniciativa do governo do Estado é interessante. Mas os que realmente não se identificam com nada de seu sexo biológico não encontram vantagem porque o nome do registro continua. O que o decreto permite fazer é a inclusão, em vermelho, do nome social como se fosse apenas um apelido”, criticou Natã.
Ainda de acordo com o coordenador do VRSH, há uma diferença gritante entre inclusão do nome social e sua retificação. Este último, segundo ele, é o verdadeiro objetivo do transgênero. “As pessoas que estão fazendo a carteira de identidade social devem saber que apenas o nome será incluído; que nada mudará no registro. Já a retificação elimina o antigo nome, substituindo-o pelo nome com o qual a pessoa se identifica”, frisou Natã.
Vale lembrar que a permissão para a retificação do nome, da qual trata Natã, já é prevista pelo Supremo Tribunal Federal. Por unanimidade, os ministros autorizaram a alteração do prenome no registro civil de transexuais e transgêneros sem a necessidade de cirurgia de mudança de sexo ou autorização judicial, diferente do que era exigido até o ano passado. ”Precisamos evitar aborrecimentos com informações distorcidas e, assim, causar transtornos fazendo com que as pessoas tenham trabalho dobrado. Ou seja, incluem o nome social e depois têm que voltar aos cartórios para fazer a retificação após a regulamentação. Esses procedimentos podem gerar custos”, explicou Natã.
O problema é que a autorização para que o uso do nome social seja simplificado só passará a valer após a publicação do acórdão e notificação dos tribunais do país. O que ainda não aconteceu. Em março, deputados federais junto à Associação Nacional de Travestis e Transexuais e a Associação Brasileira LGBT encaminharam ao Conselho Nacional de Justiça um pedido de regulamentação da troca do prenome de transexuais. Jean Willys (PSOL-RJ) comemorou a decisão do STF, mas lamentou que o Congresso não tenha tido a mesma capacidade. “Mais uma vez o STF acaba legislando no lugar do Congresso Nacional em questões de mudanças na sociedade. Isso é lamentável. Enfraquece a democracia representativa. O Congresso devia fazer isso ao povo em nome da sua diversidade”, disse.
Até que o Congresso regulamente a decisão do Supremo, o que pode nunca acontecer, pessoas trans do Rio de Janeiro continuam com duas opções quando o assunto é nome social. Ou utilizam o decreto emitido pelo governador Pezão ou seguem os passos de Paloma Salume, única voltarredondense que se tem notícia que conseguiu na Justiça o direito de mudar de nome mesmo sem ter feito a cirurgia de mudança de sexo.
Paloma defende a iniciativa do governo Pezão, mas admite que nem sempre a inclusão de um nome no registro é suficiente para garantir a dignidade do indivíduo. “É muito importante para a comunidade trans poder usar o nome mais adequado à sua aparência para poderem sentir o que realmente são. Se estiverem numa fila à espera de um atendimento, por exemplo, serão chamadas pelo nome social. Isso é muito bom, mas algumas pessoas querem realmente a mudança do seu registro”, comentou.
Paloma explicou que demorou quatro longos anos para ver o ‘seu nome’ nos seus documentos de identidade. “Eu já tenho meu nome e sexo retificados em cartório. Em todos os meus documentos, como passaporte, CPF, carteira de habilitação e título de eleitor constam o nome ‘Paloma Salume’. Para isso, enfrentei um processo que demorou quatro anos, mas venci. Hoje sou uma mulher transexual. E tenho assegurados todos os direitos que uma mulher (cisgênero, grifo nosso) tem perante a Justiça. Até mesmo a Lei Maria da Penha me ampara”, comemora, garantindo que se sente vitoriosa por servir de exemplo para transexuais e travestis.
Paloma fez questão de contar que não foi simples retificar nome e sexo, mesmo sem se submeter à cirurgia de adequação sexual. “Na época tive que levar uma série de documentos para a Justiça, que foram do ‘Nada Consta’ da Polícia a artigos de jornais e vídeos provando que as pessoas já me conheciam como Paloma. E tive de passar por uma avaliação psicológica. Também tive que apresentar duas testemunhas”, contou.
A trans disse ainda que só conseguiu a mudança do nome, mas não a de sexo. “Meus documentos diziam que meu nome era ‘Paloma’, mas o sexo continuava como ‘masculino’. Isso não se faz. Tive que entrar novamente com um processo na Justiça para pedir que corrigissem o sexo. Demorou mais de um ano e quando finalmente consegui, agradeci ao juiz que concedeu a autorização. Este, por sua vez, disse que eu não precisava agradecer, pois não importava o que eu tinha embaixo da saia. Eu sou uma mulher e isso estava visível”, lembrou, toda emocionada. “Hoje, posso até casar na igreja”, destacou.
Outros avanços
O uso do nome social sem a exigência de laudo médico ou psicológico está previsto no texto do projeto 5002/2013, parado na Câmara dos Deputados desde 2016. A proposta, chamada de Lei de Identidade de Gênero, ainda estabelece uma política de saúde pública para transexuais.
No Senado, um projeto de iniciativa popular de criminalização da homofobia chegou a ser arquivado após nove anos tramitando sem aprovação. A Casa analisará novo texto este ano.
Enquanto isso, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o agravamento da pena para crimes de injúria por questões de gênero ou orientação sexual. Ainda no Senado, projeto de 2011 inclui o casamento homoafetivo no Código Civil. O texto aguarda votação do Plenário.
O deputado federal Sóstenes Calvacante (DEM-RJ), integrante da bancada evangélica, criticou as decisões tomadas pelos Tribunais Superiores sobre o uso do nome social por transexuais em documentos e nas urnas. “O Judiciário só pode decidir assuntos que não estamos legislando. O movimento LGBT procura por eles porque sabe que na política eles perderam, e nunca vão aprovar nenhuma das suas pautas ideológicas”, avaliou.
De acordo com Sóstenes, a bancada ainda não se reuniu para discutir as recentes decisões das cortes, mas ele diz que tem “convicção” de que todos reprovam. Em 2015, frisou, a bancada evangélica do Congresso questionou judicialmente a norma que autorizou o uso do nome social por servidores públicos transexuais.
Serviço
Aos que quiserem incluir o nome social na carteira de identidade, basta pagar uma taxa (Duda) de R$ 37,15, agendar o serviço e aguardar de cinco a dez dias para receber o documento. Também é necessária declaração de próprio punho em formulário específico disponível nas unidades do Detran. O documento trará o nome social.
A Carteira de Identidade Social é válida no estado do Rio e não substitui o Registro Geral de Identidade, que só pode ser modificado após a alteração, via decisão judicial, do nome na Certidão de Registro Civil. O nome social adotado no momento da emissão do documento não poderá ser posteriormente alterado.