sexta-feira, março 29, 2024
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Cidade sem lei (II)

 

Na edição n° 1085, o aQui publicou uma dúzia de flagrantes no trânsito, cometidos por motoristas em diversas avenidas e ruas de Volta Redonda, incluindo a foto de um veículo da Guarda Municipal estacionado em ponto de táxi. Essa semana, aproveitando que a prefeitura local noticiou estar próxima de implantar uma série de mudanças no estacionamento rotativo, que será entregue a uma empresa terceirizada, voltamos ao assunto (ver fotos). Com um novo enfoque: do individualismo dos motoristas infratores, que se acham acima de todos. E que são os primeiros – como na Lava Jato – a criticar, exigindo que sejam multados os que abusam de uma ‘terra sem lei’. Desde que não seja ele o autuado.    

O aQui aproveita ainda para repercutir uma recente pesquisa sobre velocidade excessiva, desobediência ao sinal vermelho e desleixo no uso do cinto de segurança. Embora bastante debatidos, os riscos por trás dessas condutas não foram suficientes para retirá-las do ranking das dez infrações de trânsito mais comuns no estado do Rio de Janeiro no primeiro trimestre de 2017. O cenário plural e de excessos não se restringe à capital carioca. Na cidade de São Paulo, entre janeiro e dezembro de 2016, foram registradas 15.455.669 infrações de trânsito, 78% delas captadas eletronicamente. Dessas, as mais frequentes foram, respectivamente: transitar em velocidade superior à máxima em até 20%; circular em local ou horário não permitido pelo rodízio; e transitar em faixa ou via exclusiva de transporte público.

Conforme o especialista em trânsito e diretor da Perkons, empresa especializada em gestão de trânsito, Luiz Gustavo Campos, um dos caminhos para mudar esse panorama é desconstruir a cultura da individualidade, infeliz e erroneamente vinculada ao trânsito. “É necessário ter a consciência de que fazemos parte de um todo, maior e mais complexo, e que o trânsito é o conjunto de todas as ações desse sistema. O que é melhor para todos deve ser mais importante do que o objetivo perseguido por apenas um indivíduo”, salienta.

Para a conselheira do Conselho Estadual de Trânsito do Paraná (Cetran), professora Iara Thielen, a falta desse senso de coletividade no trânsito dá os primeiros indícios no desrespeito e na pouca cordialidade das relações firmadas nele. “No trânsito, cada um se acha no direito de cometer pequenos deslizes, enquanto o outro é sempre visto como inimigo. As pessoas não se dão conta que estão inseri-das em um espaço democrático e que nele não existe ação individual sem repercussão coletiva”, sintetiza.

Uma das ocasiões que mais evoca a percepção de si mesmo como sendo superior dentro do contexto é a autuação. “É comum vermos nas análises de recursos de multas um conjunto de argumentos inconsistentes, como ‘só bebi um pouquinho’. A minimização dos atos mostra que as pessoas não acreditam que as posturas tomadas no trânsito são danosas”, esclarece Iara. O resultado disso são condutores que não apenas questionam, mas depositam a culpa da infração no outro, na legislação e na fiscalização. “São mecanismos recorrentes de um infrator para não se perceber como ator – uma vez que não é apensas um coadjuvante – no trânsito”, lembra a conselheira.

Condutas do motorista
Segundo o mestre em antropologia social Marcelo Camargo, além do individualismo, uma série de outras variáveis precisam ser consideradas na relação entre motoristas e infrações cometidas. “Alguém que desrespeita regras de trânsito pode fazê-lo porque se sente mais ‘dono da rua’ do que os outros, e aí precisaríamos pensar de que maneira e o que, no Brasil, forma a ideia sobre quem é ou não mais importante, inclusive em espaços públicos. Ideias que passam por classe social, gênero, raça, origem regional, e outros eixos”, acrescenta.

Por um olhar mais amplo, Camargo entrelaça as infrações de trânsito a uma desconexão entre as demandas reais da vida na cidade e o planejamento urbano atual no país.

“Casos recorrentes de desrespeito ao espaço do pedestre, por exemplo, resultam com frequência de uma relação má construída entre o ambiente destinado a ele e ao motorista, com calçadas inadequadas, zonas de engarrafamento que estimulam a pressa e o estresse e ruas esburacadas, que impossibilitam a circulação organizada tanto de automóveis como de pedestres”, exemplifica.

É justamente sobre a administração da cidade que recai, do ponto de vista de Camargo, uma das possibilidades de desmistificar a visão negativa que se tem das infrações. “Se o objetivo é uma melhor relação entre o cidadão e as leis de trânsito, o primeiro passo é reconhecer plenamente o cidadão enquanto tal. Isto significa repensar as malhas de transportes públicos; abrir os mecanismos do planejamento público para a participação popular efetiva; garantir mais segurança no trânsito e nas ruas através da atenção efetiva às causas da insegurança; e por aí vai”, conclui.

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