sexta-feira, março 29, 2024
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Cara, cor e violência

Douglas: “Faltam políticas públicas”
Douglas: “Faltam políticas públicas”

Vinicius de Oliveira

Na tarde de terça, 27, a família de Willian Aquino, conhecido como ‘Feijão’, de 24 anos, recebeu um aviso funesto: o rapaz acabara de ser encontrado morto, jogado numa vala que margeia o escadão que liga os bairros Santa Cruz 2 e Santa Rita do Zarur, em Volta Redonda. Não se sabe ainda o que motivou a sua morte, mas, segundo informações primárias obtidas junto à Polícia Militar que esteve no local do crime, Willian teria sido executado.

 

Meses antes de Feijão, Leônidas Magno de Oliveira Domingos, um jovem de 23 anos, também foi encontrado morto. Seu corpo foi deixado em uma calçada de uma das ruas do Jardim Belmonte. Sem pistas do que teria motivado o crime, assim como no primeiro caso, a Polícia Civil até hoje não descobriu quem matou Leônidas. A única coisa de concreto nas investigações são as marcas dos três tiros que puseram fim a sua vida.

 

Feijão e Leônidas não se conheciam, mas atualmente seus nomes estão intimamente ligados. Fazem parte de uma triste estatística que vem crescendo na cidade do aço: eram negros da periferia, assassinados a sangue frio. As duas mortes tão recentes, bem como o rastro da dor visível nos familiares, são apenas o reflexo mais duro de uma realidade que se revela em números e que o assistente social voltarredondense Douglas Pereira conhece bem.

 

Nascido e criado nos bairros Padre Josimo e Jardim Belmonte, Douglas, que também é negro, viu de perto os perigos que cercam os jovens de pele preta esquecidos nas periferias. “Eu vi meus amigos negros morrerem. Cerca de 80% ou foram presos ou estão mortos. Percebi que alguma coisa estava errada. É uma chacina o que acontece com a população negra, jovem e periférica de Volta Redonda”, pontuou Douglas.

 

Impressionado com o destino violento que seus amigos e ele próprio encararam e sob a ameaça constante de encontrar a morte nas vielas das comunidades onde cresceu, Douglas se debruçou em uma extensa pesquisa de seis meses analisando os casos de assassinatos que pipocaram na mídia. Passou cinco dias vendo o que acontecia na funerária municipal e comprovou sua teoria de que a violência em Volta Redonda tem cara, cor e endereço. De acordo com os dados levantados por Douglas, dos 63 assassinatos registrados em 2015, 66,12% eram de negros, enquanto 33,87% eram de brancos.

 

“Muitas pessoas acham que  levantar a questão da vulnerabilidade vivida pelos negros de Volta Redonda e do Brasil como um todo é vitimismo. Estão enganados e os números mostram isso claramente. Existe uma balança violenta que pesa mais para o lado dos negros. Isso é fato. E em Volta Redonda a quantidade de casos assusta”, explicou Douglas, afirmando que a cada três pessoas mortas violentamente na cidade do aço, duas são negras. “É uma questão intimamente ligada ao racismo e à falta de políticas públicas com certeza”, completou.

 

Outro dado levantado por Douglas que chama a atenção diz que o rolo compressor da violência em Volta Redonda vitimiza, na maioria das vezes, os jovens negros. Segundo o estudo, do total de mortes, 58,5% são de pessoas entre 15 e 29 anos. “É preciso que o governo tenha um olhar atento a essa questão. Os jovens voltarredondenses negros têm mais propensão de serem assassinados do que qualquer outra pessoa”, afirmou, alarmado.

 

Segundo Douglas, os assassinatos de pessoas negras podem ser ainda muito maiores. “Eu trabalhei em cima de 63 mortes violentas com causa indeterminada registradas na funerária. Mas existem muitos casos de pessoas que foram baleadas na rua, foram socorridas e morreram no hospital. Na certidão de óbito aparece como causa da morte ‘anemia’, mas, na verdade, é assassinato e não entra nas estatísticas”, avaliou.

 

Para Douglas, só existe um meio de desfazer essa espiral de violência e dor que gira em torno da população negra: políticas públicas de qualidade. “Não se vence essa batalha com tiros, porradas e bombas. É preciso investimento inteligente. O desemprego nessa parcela da população é muito alto. Não existe perspectiva. Órgãos que poderiam contribuir para mudar essa triste realidade não fazem nada”, reclamou, referindo-se à Coordenadoria de Juventude de Volta Redonda. “Passaram pela pasta, nos últimos dois anos, cinco coordenadores. Nada foi feito nesse sentido. O governo precisa fazer esse enfrentamento o quanto antes”, avalia.

Renata tem medo de sair de casa por ser negra
Renata tem medo de sair de casa por ser negra

Quem concorda com ele é a professora voltarredondense Renata Ferreira, coordenadora de Cultura Afro do Instituto Dagaz e do Coletivo Meninas de Lenço e Membro do Comitê Étnico Racial da Seeduc (Secretaria Estadual de Educação) no Médio Paraíba. “A falta de políticas públicas para a juventude negra da periferia faz com que estejamos vivendo essa degradação social, estamos assistindo calados a estas chacinas, muito disso também é por falta de investimento em educação; nunca foi de interesse que os jovens negros e da periferia saiam dos guetos e se empoderem principalmente de conhecimento, porque o jovem quando adquire esse conhecimento se torna protagonista da sua vida”, afirmou.

 

Ainda de acordo com Renata, ela sente medo de sair na rua e não voltar viva para casa simplesmente por ser negra e mulher. “Eu, enquanto educadora, mãe e mulher negra, me sinto realmente com muito medo, pois não vejo uma luz no fim do túnel. Me preocupo pelos meus filhos, me preocupo por essa geração que está sendo morta e volto a dizer: é interessante para os poderosos que as coisas continuem como estão”, problematizou.

Renata conta que tenta fazer sua parte na jornada em busca de respeito e dignidade para o povo negro através da conscientização e do empoderamento. “Hoje estamos realizando roda de conversa com alunos sobre a questão da violência e das consequências na vida deles, começamos a conversar também com professores, e no Instituto Dagaz temos o projeto Cinestesia Cine Debate que trata essa questão a partir do cinema”, comentou, frisando que somente a Educação e a percepção de que o tratamento concedido a negros é diferente do que é concedido aos brancos pode reverter o quadro de violência.

 

Pode ser espantoso para quem vive em um bairro nobre, protegido por câmeras, muros altos e cercas elétricas que o principal alvo da violência em Volta Redonda não seja homens e mulheres brancos e ricos. Mas a pesquisa não traz novidade para quem sente na pele um genocídio em curso.

 

Muitas dessas mortes ocorrem na forma de pacotes, seja pelas mãos do tráfico, de milícias ou de integrantes da própria polícia. Não raro, elas permanecem sem solução. Como, por exemplo, os assassinatos de Feijão e Leônidas, os dois casos usados para abrir essa matéria.

 

Tem mais. Não raro, ‘os cidadãos de bem’ apoiam formas de limpeza social do que chamam de “maus elementos”. Nas redes sociais, a filosofia conservadora joga na vala comum os mortos baseando seu julgamento na cor da pele, na vestimenta ou nos trejeitos da vítima. Até um formato específico de bigode já foi suficiente para classificar um jovem assassinado como bandido, antes mesmo deste ter sido investigado pela Polícia e ter um julgamento justo. “Quem faz esse tipo de comentário é gente que não sente na pele o que nós que somos pretos sentimos. Sugiro que vejam no youtube um documentário chamado ‘Vista minha Pele’ e se coloquem no lugar do outro”, opinou Renata.  

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